UNIDADE 5
Este texto é parte integrante da Apostila de Teoria Literária, produzida pelos professores Antônio Wagner Rocha e Maria Generosa Ferreira Souto
PHILIPPE LEJEUNE E O CONCEITO DE AUTOBIOGRAFIA
Não são poucos os escritores brasileiros e de outras nacionalidades
que se dedicaram a escrever obras tematizando sobre os acontecimentos da
sua própria vida, a partir de exercícios memorialísticos e reflexões
relacionadas às suas vivências cotidianas.
A autobiografia destaca-se como
um gênero literário que se caracteriza pelo
seu estilo narrativo destinado a relatar a
experiência de vida do seu autor. Trata-se
de um texto geralmente escrito em prosa,
onde o próprio autor é biografado por si
mesmo. Sendo assim, o texto é formulado
na primeira pessoa do singular,
predominando sempre a voz de quem
escreve, narra, reflete.
Um dos maiores estudiosos e
especialistas em autobiografia é o francês
Philippe Lejeune (1938). A partir das suas
obras, podemos perceber que a prática da autobiografia é algo muito antigo,
ou seja, essa necessidade do homem de fixar através do registro escrito as
suas vivências não é tão nova como muitos imaginam. Porém, o
desenvolvimento da literatura íntima, ou seja, desse gênero confessional, só
ganha um papel relevante com o estabelecimento da burguesia, responsável
por disseminar a noção de indivíduo, pois é nesse período que o homem
ocidental começa a adquirir a convicção histórica da sua existência.
De acordo com Philippe Lejeune, a autobiografia é uma “narrativa
(récit) retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria
existência enfatizando sua vida individual, em particular, a história de sua
personalidade” (LEJEUNE, 1986, p.15). Ao cunhar o conceito de “pacto
autográfico” a fim de oferecer uma maior clareza do que venha a ser, de fato,
autobiografia, ele nos apresenta a seguinte definição:
Todo texto regido por um pacto autobiográfico onde um
autor propõe ao leitor um discurso sobre si, mas também
uma realização particular deste discurso, aquela onde se
responde à questão “quem sou eu?” por uma narrativa que
diz “como eu me tornei assim” (LEJEUNE, 1986, p.19). O
espacejamento tem que ser simples das citações diretas
longas.
Assim podemos afirmar que toda autobiografia tem um
compromisso com a verdade, sendo que qualquer fato inventado e sem
veracidade faria com que ela perdesse seu caráter autobiográfico para se
DICAS
MORÃO, Paula. (Org.).Autobiografia; autorepresentação.Lisboa:Colibri/CEC, 2004.
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Figura 56: Philippe Lejeune
Fonte: http://philippeamen.canalblog.
com/images/philippe_lejeune.jpg
tornar um texto ficcional. A autobiografia não pode ser uma invenção
resultante da imaginação do seu autor como acontece nos romances, mas
trata-se de um gênero literário que exige plena fidelidade quanto à verdade
dos fatos, mesmo que o seu autor utilize-se de alguns recursos metafóricos e
de criação.
AUTOBIOGRAFIA COMO LITERATURA CONFESSIONAL
Apresentaremos agora um breve comentário acerca de três obras
que, coincidentemente, possuem o mesmo título, Confissões, e que foram
escritas por autores pertencentes a três épocas e períodos históricos
totalmente diferentes: Santo Agostinho (354-430), Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778) e Darcy Ribeiro (1922-1997).
Nessas obras é possível observar que os seus autores, cada um a seu
modo, relatam fatos significativos de suas vidas, enfatizando as suas
experiências e reflexões. Evidentemente, cada qual impulsionado por seus
próprios motivos. Não há dúvida de que essas obras constituem-se como
fontes importantes para o estudo da autobiografia como gênero literário.
a) Santo Agostinho
Nas suas Confissões, escrita em 397-
398, Santo Agostinho, bispo católico, teólogo,
filósofo, doutor da Igreja, nascido no norte da
África, relata de maneira minuciosa e até mesmo
poética, a trajetória da sua vida antes de se
tornar cristão e o processo da sua conversão ao
cristianismo.
Trata-se de uma obra que explora os
aspectos autobiográficos em conformidade com
o pensamento teológico e filosófico do autor,
uma vez que Santo Agostinho tem como meta
fundamental mostrar, a partir dos seus erros e
pecados, a sua pequenez diante da grandeza de
Deus.
Nos relatos que se compõem as comoventes páginas de Confissões,
encontramos os seguintes temas relacionados à vida do seu autor: a infância,
os pecados da adolescência, os estudos, a sua atividade de professor, sua
estada em Roma e em Milão e o seu encontro com Santo Ambrósio, a
relação com os amigos e com a sua mãe Mônica, a descoberta de Deus, a
conversão e o batismo, dentre outros. Vejamos um pequeno trecho da obra:
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Letras/Português Caderno Didático II - 2º Período
Figura 57: Santo Agostinho.
Fonte: http://www.cot.org.br/
igreja/img/santo-agostinho.jpg
Durante esse período de nove anos desde os dezenove até os
vinte e oito, cercado de muitas paixões, era seduzido e
seduzia, era enganado e enganava: às claras, com as ciências
a que chamam liberais, e às ocultas sob o falso nome de
religião. Aqui ostentava-me soberbo, além supersticioso e
em toda parte vaidoso. Ora corria atrás da futilidade da glória
popular, até aos aplausos dos teatros, dos jogos florais, ao
torneio de coroa de feno, às bagatelas de espetáculos e
paixões desenfreadas, ora desejando purificar-me destas
nódoas, conduzindo aos que eram chamados “eleitos” e
“santos” , alimentos com que, na oficina dos seus estômagos,
fabricassem anjos e deuses que me dessem a liberdade.
Seguia estas práticas, dando-me a elas com meus amigos,
iludidos por mim e comigo. (SANTO AGOSTINHO,
Confissões.)
Faz-se necessário ressaltar que hoje Confissões, de Santo Agostinho,
é o seu livro mais lido. Além de se caraterizar pela sua estrutura
autobiográfica, a obra também possui um teor místico, sobretudo ao retratar
o drama de uma alma que se redime. As angústias, dúvidas e atribulações
vividas pelo autor são apresentadas de forma profunda e original.
b) Jean-Jacques Rousseau
Jean-Jacques Rousseau,
filósofo nascido em Genebra/Suíça e
falecido em Paris, considerado um
dos precursores do Romantismo,
escreveu uma obra de suma
importância para o pensamento
ocidental, cujo título também é
Confissões e que narra os fatos da sua
vida e expõe muito das suas ideias
sobre filosofia, religião, política,
antropologia e sociedade.
Essa obra parece estar
imbuída de duas tarefas: relatar as
experiências e inquietações de uma
vida particular e, ao mesmo tempo, apresentar ao leitor uma visão
extremamente reflexiva e de alto valor filosófico sobre a natureza humana.
Apesar disso, conforme nos mostra José Oscar Almeida Marques,
“só muito recentemente as Confissões foram reconhecidas como obra de
valor filosófico” (MARQUES, 2004). Ele nos lembra ainda que “em
contrapartida, a influência literária dessa obra foi enorme e imediata, tendo
criado, sozinha, o próprio gênero da autobiografia, sendo que nem esta
palavra existia antes” (MARQUES, 2004) Em uma das suas passagens, assim
expressa Rousseau:
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Teoria da Literatura UAB/Unimontes
Figura 58: Jean-Jacques Rousseau.
Fonte: http://www.estacaoliberdade.com.
br/autores/rousseau.jpg
Meu pai, depois do nascimento de meu único irmão, partiu
para Constantinopla, para onde fora chamado, e tornou-se
relojoeiro do harém. Em sua ausência, a beleza de minha
mãe, seu espírito, seus dons, atraíram-lhe homenagens. M.
de la Closure, ministro residente de França, foi um dos mais
solícitos em apresentá-las. Era preciso que tal paixão fosse
bem viva para que, ao fim de trinta anos, eu o visse
enternecer-se ao falar-me dela. Para defender-se, minha
mãe tinha mais do que a virtude: amava ternamente o
marido. Apressou-o a voltar: ele abandonou tudo e voltou.
Fui o triste fruto de tal regresso. Dez meses depois nasci fraco
e doentio. Meu nascimento custou a vida de minha mãe e foi
a primeira de minhas infelicidades. (Rousseau, Confissões.)
O espacejamento tem que ser simples das citações diretas
longas.
c) Darcy Ribeiro
O antropólogo Darcy Ribeiro,
nascido em Montes Claros, membro
da Academia Brasileira de Letras,
também escreveu a sua autobiografia,
livro concluído quarenta dias antes da
sua morte, em 1997. Também com o
título de Confissões, a exemplo de
Santo Agostinho e Jean-Jacques
Rousseau, o livro traz um relato repleto
de humor e ironia, escrito através de
um estilo marcadamente coloquial,
sobre a vida do autor, os casos curiosos
da sua família e as suas ideias políticas.
Sem dúvida, trata-se de uma
obra fundamental para compreender a
trajetória desse importante intelectual montes-clarense que se destacou
também como político. Intelectualmente dotado de ideias originais, Darcy
Ribeiro, autor de várias outras obras, revelou-se como um grande estudioso
da cultura brasileira, sendo que em Confissões é possível observar
claramente a riqueza com que o mesmo constrói, através da sua implacável
memória, uma obra densa sobre si mesmo e também sobre pontos
importantes da história do Brasil. Assim ele nos diz:
Escrevi estas Confissões urgido por duas lanças. Meu medopânico
de morrer antes de dizer a que vim. Meu medo ainda
maior de que sobreviessem as dores terminais e as drogas
heroicas trazendo com elas as bobeiras do barato (...) Este
livro meu, ao contrário dos outros todos, cheios de datas e
precisões, é um mero recanto espontâneo. Recapitulo aqui,
como me vem à cabeça, o que sucedeu pela vida afora,
desde o começo, sob o olhar de Fininha, até agora, sozinho
neste mundo . (...) Quero muito que minhas Confissões
ATIVIDADES
Após compreender o que é
autobiografia, elabore um
pequeno texto de caráter
autobiográfico, relatando
um fato interessante da sua
infância, uma experiência,
algum acontecimento que
você julga ser de muita
importância na sua
trajetória pessoal.
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Letras/Português Caderno Didático II - 2º Período
Figura 59: Darcy Ribeiro.
Fonte: http://www.portalgiro.com/
girocultural/supernews/admin/upload_
imagens/darcyribeiro.jpg
REFERÊNCIAS
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. (Org.
Jovita Gerheim Noronhoa). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.
LIMA, Luiz Costa. A literatura e o leitor: textos da estética da recepção. Rio
de Janeiro: Paz e terra, 1979.
MARQUES, José Oscar Almeida. “Rousseau e a forma moderna da
autobiografia”. IX Congresso Internacional da Associação Brasileira de
Literatura Comparada (ABRALIC), Instituto de Letras da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 2004.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica e escritura. 2ª ed. São Paulo: Ática,
1993.
RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
ROGEL, Samuel. Manual de Teoria literária. Petrópolis: Vozes, 1984.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Confissões. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
SANTO AGOSTINHO. Confissões. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina.
Petrópolis: Vozes, 2002.
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