O Classicismo se inicia em Portugal no ano de 1527. O marco cronológico desse período é a volta de Francisco Sá de Miranda a Portugal, após passar seis anos na Itália, introduzindo, assim, novos conceitos de arte e um novo ideal de poesia, conhecido como dolce stil nuovo (doce estilo novo).
Em oposição ao ideal quatrocentista de poesia, escrito em redondilha maior ou menor, Sá de Miranda traz da Itália a medida nova (versos decassílabos), já cultivada por Dante Alighieri e Francesco Petrarca. Novas formas poéticas de inspiração clássica passam a ser compostas pelos artistas chamados de humanistas ou italianizantes: o soneto (composição de 14 versos divididos em dois quartetos e dois tercetos), a ode (poesia de exaltação), a elegia (composição inspirada em sentimentos tristes), a écloga (composição amorosa, pastoril), a epístola (composição poética à maneira de uma carta).
Sá de Miranda
Francisco Sá de Miranda nasceu em Coimbra, em 1481. Após frequentar a Universidade de Lisboa e a corte do rei D. João III, fez uma importante viagem à Itália renascentista, lá permanecendo de 1521a1526. Nessa estada por terras italianas, conviveu com alguns dos mais importantes artistas da época. Em 1527, já estabelecido novamente em Portugal, divulgou a nova concepção de arte, o doce estilo novo. Faleceu em 1558. De sua produção literária, merecem destaque duas comédias –Estrangeiros e Vilhalpandos-além de algumas poesias, entre elas uma em que é um dos pioneiros ao apresentar o tema do homem dividido na literatura portuguesa:
“Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo:
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.”
O século XVI é considerado um período áureo da arte e particularmente da literatura portuguesa: ao lado dos maravilhosos monumentos arquitetônicos do período manuelino
(governo de D. Manuel), temos a produção do humanista Gil Vicente, e o Renascimento português encontra sua máxima expressão em Luís de Camões. Também é no século XVI que a língua portuguesa assume contornos definitivos, iniciando o período do português moderno.
Entretanto, é no final desse mesmo século XVI que Portugal conhece uma grande derrocada econômica e política. Em 1580, temos a unificação da Península Ibérica sob domínio espanhol. Esse fato marca o fim do Classicismo quinhentista e, sob a influência espanhola, inicia-se o Barroco.
O RENASCIMENTO EM PORTUGAL
No século XIV, verifica-se o fim do monopólio clerical no que diz respeito à cultura. Os filhos dos burgueses começam a freqüentar as universidades e a tomar contato com uma cultura desligada dos conceitos medievais. A nova realidade econômica vivida pela Europa com a decadência do feudalismo e o fortalecimento da burguesia exige uma nova cultura, mais liberal, antropocêntrica, identificada com o mercantilismo. Pode-se definir o Renascimento como “a aceitação definitiva das formas em que a arte, a historia, a literatura e a filosofia greco-latinas se tinham expresso, e a assimilação do espírito pagão que as animava”.
O Renascimento teve por berço a Itália, logo se estendendo aos demais países europeus. Em Portugal o momento histórico vivido pela Dinastia de Avis (a centralização do poder, as Grandes Navegações, o comércio) é propício à entrada dos novos ventos trazidos da Itália. Já no final do século XV (1487) foi introduzida a imprensa em Portugal. Começam a ser lidos autores humanistas italianos como Dante Alighieri, Francesco Petrarca e Giovanni Boccaccio.
Entre os autores portugueses marcados por forte tom humanista, destacam-se os historiadores João de Barros, Damião de Góis e Fernão Mendes Pinto; e, entre os autores tipicamente renascentistas, Sá de Miranda, Antônio Ferreira (autor da tragédia A Castro) e Luís de Camões.
Os humanistas: uma nova visão do mundo
“Os humanistas, num gesto ousado, tendiam a considerar como mais perfeita e mais expressiva a cultura que havia surgido e se desenvolvido no seio do paganismo, antes do advento de Cristo. (...) Eram todos cristãos e apenas desejavam reinterpretar a mensagem do Evangelho à luz da experiência e dos valores da Antiguidade. Valores esses que exaltavam a capacidade de ação do homem, sua liberdade de atuação e de participação na vida das cidades. A crença de que o homem é a fonte de energias criativas ilimitadas, possuindo uma disposição inata para a ação, a virtude e a glória. Por isso, a especulação em torno do homem e de suas capacidades físicas e espirituais se tornou a preocupação fundamental desses pensadores, definindo uma atitude que se tornou conhecida como antropocentrismo. A coincidência desses ideais com os propósitos da camada burguesa é mais do que evidente.”
(SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. 2. ed. São Paulo. Atual/ Campinas, Unicamp, 1985. p.14-5.)
CARACTERÍSTICAS
O Classicismo é a época literária que se fundamenta na imitação da estética literária seguida pelos mestres da Antiguidade Clássica greco-romana. Imita-se primeiramente a Itália e depois a Antiguidade. A literatura passa a se caracterizar pela retomada da mitologia pagã, pela perfeição estética, marcada pela pureza de formas. Os homens do século XVI acreditavam que os antigos gregos e romanos eram detentores dos ideais de Beleza. Dessa forma, Platão, Homero, Virgílio e outros mestres da Antiguidade são imitados, pois seus valores são eternos e absolutos.
A poesia adota certas formas poéticas fixas, sujeitas a determinadas regras. Com isso, surge um novo conceito de poesia, uma vez que os poetas se sentem mais preparados intelectualmente se comparados aos poetas medievais; os temas poéticos são vários, atingindo a reflexão moral, a filosofia, a política, além do lirismo amoroso. Quanto à métrica, ao lado de uma herança medieval representada pelas redondilhas, usa-se a medida nova. Além do soneto, introduzido em Portugal por Sá de Miranda, o Classicismo cultiva a epopéia, segundo os modelos de Homero (Ilíada e Odisséia) e de Virgílio (Eneida).
O verso decassílabo- também chamado de medida nova- é típico do Renascimento. São dez sílabas poéticas, contadas até a última sílaba tônica de cada verso. Dependendo de sua acentuação, o decassílabo divide-se em heróico (acentos na 6º e 10º sílabas poéticas) e sáfico (acentos na 4º, 8º e 10º sílabas poéticas).
A PRODUÇÃO LITERÁRIA: Luís Vaz de Camões
A vida de Camões ainda permanece pontilhada de dúvidas. Admite-se como a data mais provável de seu nascimento o ano de 1524. Era filho de Simão Vaz de Camões e de Ana de Sá de Macedo, e descendente de uma família de fidalgos decadentes. Teria freqüentado por algum tempo a Universidade de Coimbra. Serviu como militar no Norte da África, onde, ferido em combate, perdeu o olho direito. Com certeza, em 1550 vivia em Lisboa e freqüentava a corte; em 1552 foi preso por ter agredido um oficial do rei e só foi posto em liberdade em 1553, indo direto para o exílio. Inicia-se assim uma longa jornada de 17 anos de exílio, tendo o poeta vivido nas colônias portuguesas da África e da Ásia, chegando a morar em Macau, colônia portuguesa na China. Foram anos de dificuldades econômicas e algumas passagens pela cadeia. Só retorna a Portugal em 1570, após a morte de D. João III, já com Os lusíadas terminados, em 1572 é publicada a primeira edição do poema. D. Sebastião, rei de Portugal a quem havia sido dedicado o poema, concede-lhe uma pensão de 15.000 réis por ano, quantia que o poeta recebeu sem regularidade. Morre na miséria em 10 de junho de 1580, sendo enterrado como indigente, em vala comum.
Sua obra é composta de poesias líricas, uma poesia épica, três peças para teatro e algumas cartas.
Camões lírico
Camões é tradicionalmente considerado o maior poeta lírico português. A poesia lírica de Camões apresenta-se marcada por uma dualidade: ora são textos de nítida herança da tradicional poesia portuguesa, inclusive escritos em redondilhas; ora são poesias perfeitamente enquadradas no estilo novo do Renascimento. Entretanto, não se pode dizer que Camões tenha conseguido isolar suas influências; pelo contrário, elas aparecem misturadas, fundidas, resultando daí uma obra típica do século XVI. Para uma da poesia lírica camoniana, passamos a uma rápida caracterização dos principais temas abordados:
-Poesia tradicional- a herança das cantigas trovadorescas em Camões aparece principalmente nas redondilhas. O mar, a fonte, a natureza surgem constantemente em diálogos, lembrando as cantigas de amigo:
Cantiga
“Cantiga alheia:
Na fonte está Lianor
Lavando a talha e chorando,
Às amigas perguntando:
- Vistes lá o meu amor?”
Voltas
“Posto o pensamento nele,
Porque a tudo o amor obriga,
Cantava, mas a cantiga
Eram suspiros por ele.
Nisto estava Lianor
O seu desejo enganando,
Às amigas perguntando:
- Vistes lá o meu amor?”
Como se observa, é a mesma temática das cantigas de amigo, só que agora escrita em terceira pessoa, e não mais em primeira, ou seja, o poeta não mais escreve colocando-se no lugar da mulher, mas escreve sobre a mulher angustiada à espera de seu namorado.
- Neoplatonismo (as idéias platônicas em Camões)- Platão e sua filosofia foram retomados em meados do século XV pelos humanistas da cidade de Florença e marcaram fortemente toda a produção literária do Renascimento. Percebe-se nitidamente essa influência platônica em várias composições de Camões, tanto em alguns sonetos como nas redondilhas de Babel e Sião.
Platão concebia dois mundos: um mundo sensível, em que habitamos, e o mundo inteligível, das idéias puras. Neste, encontramos as divinas essências, as verdades: Deus, o Belo, o Bom, a Sabedoria, o Amor, a Justiça etc. No mundo sensível, as realidades concretas são simples sombras ou reflexos das idéias puras. As almas, que são imortais, habitam o mundo inteligível; quando as almas caem da esfera inteligível para a sensível, conservam uma recordação que podem avivar por meio da reminiscência. Há, dessa forma, uma constante busca do ideal, que não é mais do que uma tentativa de ascensão do mundo sensível (das realidades concretas, meras imitações particulares) ao mundo inteligível (da essência, a verdade universal). No mundo sensível temos, por exemplo, amores particulares; no mundo inteligível, temos o Amor (a maiúscula indica sempre a essência, a idéia), ou melhor, o Amor platônico.
A partir do século XV, percebe-se uma tentativa de aproximar a filosofia platônica dos princípios do cristianismo. Dessa forma, o mundo inteligível, as essências, as verdades corresponderiam, segundo a tradição cristã, ao Céu e as criações divinas.
Seio
“O teu seio que em minha mão
Tive uma vez, que vez aquela!
Sinto-o ainda, e ele é dentro dela
O seio-idéia de Platão.”
(BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 8 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1980. p.224.)
A alegoria da caverna
“Num de seus diálogos, em A República, Platão compara os dois mundos: o mundo sensível e o mundo inteligível; compara-os as sombras que se projetariam no fundo de uma caverna escura se por diante da entrada dessa caverna passassem objetos iluminados pelo sol. Do mesmo modo que entre as sombras projetadas por esses objetos e os objetos mesmos há um abismo de diferença, e, sem embargo, as sombras são em certo modo partícipes da realidade dos objetos que passam, desse mesmo modo os seres que contemplamos na nossa existência sensível, no mundo sensível, não são mais que sombras efêmeras, transitórias, imperfeitas, passageiras, reproduções ínfimas, inferiores, dessas idéias puras, perfeitas, eternas, imperecíveis, indissolúveis, imutáveis, sempre iguais a si mesmas, cujo conjunto forma o mundo das idéias.”
(MORENTE, Manuel Garcia. Fundamentos da filosofia. São Paulo, Mestre Jou, 1964.p.85-6.)
Em plena década de 70, Gilberto Gil compôs uma música na qual, de forma platônica, falava da esperança de viver numa sociedade mais justa, livre e feliz (seria a idéia pura, mundo inteligível), em oposição à situação concreta de uma sociedade injusta e ditatorial, um mundo de trevas (mundo sensível). O compositor baiano inicia a letra da composição lembrando a alegoria da caverna:
“O mundo da sombra, caverna escondida,
onde a luz da vida foi quase apagada;
o mundo da sombra, região do escuro,
do coração duro, da alma abalada, abalada...”
A música intitula-se “Balada do lado sem luz”.
-O Amor- um dos temas mais ricos da lírica camoniana é o Amor visto como idéia (neoplatonismo) e o amor como manifestação de carnalidade. No Amor enquanto idéia ou espiritualidade, que conduz a uma idealização da mulher, é nítida a influência da poesia de Petrarca (e, por extensão, de Dante Alighieri). A mulher amada é sempre retratada de forma ideal, recorrendo o poeta a uma constante adjetivação, que descreve um ser superior, angelical, perfeito (tal qual Laura, amada por Petrarca, e a Beatriz de Dante Alighieri). Por outro lado, a própria vida atribulada do poeta, sua experiência concreta (diríamos, do mundo sensível), leva Camões a cantar não mais um amor espiritualizado, mas um amor terreno, carnal, erótico (é a Vênus que aparece em inúmeras poesias líricas e mais adiante aparecerá em Os lusíadas). A impossibilidade de obter uma síntese desses dois amores leva a poesia camoniana algumas vezes a uma contradição que se manifesta no uso abusivo de antíteses.
- O “desconcerto do mundo”- esse foi um dos temas que mais perturbou o poeta português, manifestando-se nas injustiças, no prêmio aos maus e no castigo aos bons; na ambição e na tentativa de guardar bens que acabam no nada da morte; nos sofrimentos constantes que aniquilam as prováveis conquistas; enfim, num conflito violento entre o ser e o dever ser. Portanto, o mundo é um “desconcerto” e:
“Quem pode ser no mundo tão quieto
ou quem terá tão livre o pensamento
(ao)
ver e notar do mundo o desconcerto?”
O inconformismo do poeta se manifesta claramente nas famosas redondilhas que afirmam:
“Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos,
e, para mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mal.Mas fui castigado.
Assim que só para mim
anda o mundo concertado.”
TEXTO 1
Mote alheio
Perdigão perdeu a pena,
Não há mal que lhe não venha.
Voltas
Perdigão que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha.
Quis voar a uma alta torre,
Mas achou-se desasado;
E, vendo-se depenado,
De puro penado morre.
Se a queixumes se socorre
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha.
TEXTO 2
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assi negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,
Começa de servir outros sete anos,
Dizendo:- Mais servira, se não fora
Pera tão longo amor tão curta a vida!
Este soneto remonta a uma passagem bíblica que narra à história do pastor Jacó e de seu amor por Raquel. Esta, filha de Labão, tinha uma irmã mais velha: Lia. Para casar-se com Raquel, Jacó submeteu-se à condição imposta por Labão: trabalhar para ele por sete anos. Findo este prazo, Labão entregou-lhe Lia (segundo a tradição, a filha mais velha devia ser a primeira a se casar). Desapontado, Jacó desposou Lia, mas continuava desejando Raquel. O pai da moça, então, propôs-lhe novamente o mesmo acordo.
Assim se fez: Jacó trabalhou mais sete anos para ter Raquel mas, segundo a bíblia, “eles se mostraram aos seus olhos como apenas alguns dias, por causa de seu amor por ela”.
TEXTO 3
Busque Amor novas artes, novo engenho,
Pera matar-me, e novas esquivanças;
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, conquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal que mata e não se vê;
Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei por quê.
A propósito dos textos
1-No texto 1, Camões trabalha com várias palavras de duplo significado. Dê dois exemplos tirados do texto.
2-Relacione o texto 1 com aquele famoso provérbio que diz “Quanto mais alto o vôo, maior a queda”.
3-Seria possível relacionar Perdigão com Portugal? Justifique a resposta.
4-De que modo Camões vê o amor no texto 2?
5-E o Amor, no último terceto do texto 3?
6-A quase totalidade dos poetas, em todos os tempos, escreveu sobre o Amor. Cite algumas palavras relacionadas ao Amor, escritas por um poeta, ou mesmo por um compositor popular, que ficaram marcadas em você.
TEXTO 4
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo amor?
CAMÕES, Luís Vaz de. In: Obras completas. 4. ed. Lisboa, Sá da Costa, 1971.
A propósito do texto
1- Qual o nome que se dá a esse tipo de composição poética (14 versos divididos em dois quartetos e dois tercetos)?
2- O poeta repete várias vezes a forma verbal é, com a função de ligar um predicativo a um sujeito. Qual o sujeito desses verbos?
3- Qual a característica maior de todos os predicativos que aparecem no texto?
4- O texto apresenta várias antíteses. Qual seria a maior delas?
5- Você acredita que o Amor traz amizade aos corações humanos? Por quê?
Camões épico- Os lusíadas
Publicado em 1572, Os lusíadas é considerado o maior poema épico da língua portuguesa. Não pelos 8.816 versos decassílabos distribuídos em 1.102 estrofes de oito versos cada, mas pelo seu valor poético.
Para uma melhor compreensão do poema, levantaremos a seguir alguns aspectos fundamentais da obra:
- Título- Camões foi buscar a palavra lusíadas numa epístola escrita por André de Resende, em 1531. A palavra significa ‘os lusitanos’ e, como afirma Hernâni Cidade, é um “nome que logo nos anuncia a história heróica de todo um povo. Os lusíadas são os próprios Lusos, em sua alma como em sua ação”.
- Herói- o herói de Os lusíadas não é Vasco da Gama, como se poderia pensar numa leitura superficial do poema, mas sim todo o povo português (do qual Vasco da Gama é digno representante). O próprio poeta afirma que vai cantar “as armas e os barões assinalados” que navegaram “por mares nunca dantes navegados”.
Ou seja, todo o povo lusitano navegador que enfrenta a morte pelos mares desconhecidos (lembre-se de que corriam várias lendas sobre o Mar Tenebroso).
“As epopéias são narrativas de fundo histórico em que se registram poeticamente as tradições e os ideais de um grupo étnico sob a forma de aventuras de um ou alguns heróis.”
(Antônio José Saraiva)
O herói de Os lusíadas
“Tem-se discutido se o herói d’ Os lusíadas era o povo português (‘ o peito ilustre lusitano’) ou Vasco da Gama. As duas teses podem conciliar-se. Vasco da Gama é ao mesmo tempo uma personagem real e simbólica. O que ele fez basta para consagrar a sua fama, que é universal. Temos, porém, de verificar que o poeta resume nele toda a glória dos descobridores que o precederam e lhe sucederam.”
(LE GENTIL, Georges. Camões. Lisboa, Portugália, 1969.p.57.)
-Tema- o poeta deixa expresso o tema da epopéia nas duas primeiras estrofes: a glória do povo navegador português, que “entre gente remota edificaram/ Novo Reino que tanto sublimaram”, isto é, os navegadores que conquistaram as Índias e edificaram o Império Português do Oriente, bem como as memórias dos reis portugueses que tentaram ampliar o Império: “E também as memórias gloriosas/ Daqueles reis que foram dilatando/ A Fé, o Império...”. Portanto, Camões cantará as conquistas de Portugal, as glórias dos navegadores, os reis do passado; em outras palavras, a história de Portugal.
O tempo de Camões
“Mas na vastidão do império estava implícitas as causas da ruína. O pequeno reino português, nascido entre brados de guerra e fortalecido no meio do estrondo das armas, sabia conquistas; mas o mesmo pequeno reino, de recursos diminutos e pobre de gente, pela continuação da peleja, não pôde conservar as suas conquistas. As riquezas do além-mar, o ouro do novo mundo, tornaram-se a perdição da pátria. As virtudes cívicas do velho Luso não existiam às novas condições de vida. Todos queriam gozar e chegar rapidamente ao ócio que a fortuna proporciona. O arado e a enxada não bastavam para alcançar este fim; só os serviços ultramarinos, na frota e nas colônias. As grandes armadas exigiam um pessoal numeroso de marinheiros e de soldados. Naufrágios e guerras, os climas inóspitos, os cansaços das viagens, febres e pestes, a vida desregrada, dizimavam anualmente as legiões de imigrantes que saiam do Continente. Muitos deixavam-se estar nas terras estrangeiras, porque não tinham com que pagar a volta.
Assim foram escasseando pouco a pouco em Portugal os braços robustos. A indústria e o comércio definhavam; os campos jaziam incultos e maninhos. Portugal adoecera de anemia, resultante da sua grandeza colonial.”
(STORCK, Wilhelm. Vida e obras de Luís de Camões. Lisboa, 1897.p.86-7.)
- Estrutura- os dez cantos que formam o poema aparecem divididos em cinco partes, comuns a todas as epopéias clássicas:
- Proposição: é a apresentação do poema, com destaque para o tema e o herói. São as estrofes 1,2 e 3 do Canto I:
Estrofe 1
“As armas e os Barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;”
Estrofe 2
“E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando:
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.”
Estrofe 3
“Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Netuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.”
-Invocação: o poeta pede inspiração as Tágides, ninfas do rio Tejo, para que lhe dêem um “engenho ardente” e “um som alto e sublimado, um estilo grandíloco”. A invocação inicial é feita nas estrofes 4 e 5 do Canto I.
-Dedicatória: o poema é dedicado a D. Sebastião, rei de Portugal à época da publicação do poema. A Dedicatória se estende da estrofe 6 à 18 do Canto I.
-Narração: é a longa parte narrativa na qual o poeta desenvolve o tema contando os episódios da viagem de Vasco da Gama e a história de Portugal. Estende-se da estrofe 19 do Canto I até a estrofe 144 do Canto 10, totalizando 1072 estrofes. A seguir, veremos rápidos resumos dos cantos para uma idéia da totalidade do poema.
Canto I
A narração se inicia com a frota portuguesa
em pleno oceano Índico- portanto, já no meio da viagem:
“Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando”
Surgem os primeiros obstáculos. O destino dos navegadores é decidido no Concílio dos deuses no Olimpo. Baco e Netuno estão contra os portugueses, Vênus e Marte estão a favor; Júpiter decide pela continuidade da viagem, atendendo aos pedidos de Vênus. A viagem prossegue até Mombaça.
Canto II
Narra a viagem de Mombaça a Melinde. Mais uma vez, Baco tenta destruir a frota portuguesa, que é salva pela interferência de Vênus. Ao chegar a Melinde, Vasco da Gama é recebido pelo rei, o qual lhe pede que conte a História de Portugal:
“-Mas antes, valeroso Capitão,
Nos conta (lhe dizia), diligente,
Da terra tua o clima e região
Do mundo onde morais, distintamente;
E assi de vossa antiga geração,
E o princípio do Reino tão potente,
Cos sucessos das guerras do começo,
Que, sem sabê-las, sei que são do preço.”
Canto III
Vasco da Gama inicia a narração da história de Portugal; Neste Canto, é contada a história da primeira dinastia portuguesa (desde a formação do Estado independente até a Revolução de Avis). Ao narrar o governo de D. Pedro, Camões escreve o mais belo episódio lírico do poema: o caso de Inês de Castro.
Estrofe 119
“Tu, só tu, puro amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.
Estrofe 120
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito;
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuito,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.”
Canto IV
Vasco narra ao rei de Melinda a história da segunda dinastia, período que vai desde a Revolução de Avis até a saída da frota de Gama, já no governo de D. Manuel. No final do Canto, quando a frota vai iniciar a viagem surge na praia do Restelo um velho que faz sérias críticas às navegações, mostrando que o povo, alheio aos lucros, é quem navega e morre; o rei e a burguesia lucram.
Estrofe 95
“Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C’uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles exprimentas!
Estrofe 97
A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos a esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessa de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?”
Compare essa fala do velho do Restelo com a estrofe que inicia o Epílogo, transcrita mais adiante. Diríamos que a desilusão final do poeta apresenta seus primeiros sintomas já na fala do velho.
Canto V
Ainda em Melinde, Vasco da Gama agora narra a viagem de Portugal ao Canal de Moçambique, no Índico. São vários obstáculos, representados ora por fenômenos naturais (como a tromba marítima), ora por doenças (como o escorbuto). Neste Canto, Vasco narra a passagem pelo Cabo das Tormentas, personificado na figura do Gigante Adamastor; diálogo entre Vasco da Gama e o Gigante.
Escorbuto
Nome de uma doença provocada pela carência de vitamina C. Surgem placas esbranquiçadas pelo corpo, as gengivas incham e sangram, há hemorragias internas e externas. Em pouco tempo, as gengivas apodrecem e os doentes falecem.
O escorbuto atacava os navegadores portugueses principalmente na região próxima ao trópico de Capricórnio, nas costas africanas (daí o escorbuto ser também conhecido como “mal de Luanda”- Luanda, capital de Angola).
Era um dos males mais temidos pelos navegadores, assim mostrado por Camões:
“E foi que, de doença crua e feia,
A mais que eu nunca vi, desampararam
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
Os ossos para sempre sepultaram.
Quem haverá que, sem o ver, o creia,
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gengivas na boca, que crescia
A carne e juntamente apodrecia?”
(estrofe 81, Canto V)
Canto VI
Os portugueses partem de Melinde em direção a Calecute, na Índia. Baco e Netuno convencem Éolo, deus dos ventos, a armar uma violenta tempestade; mais uma vez, Vênus salva os lusitanos. Chegada à Índia.
Canto VII
Há uma descrição da Índia e dos primeiros contatos com os mouros. Camões interrompe a narração para lamentar-se de sua vida miserável, de várias injustiças sofridas, e mostra os primeiros sintomas de cansaço.
Canto VIII
Continua a narração dos acontecimentos na Índia; mais problemas com os mouros; referências ao comércio.
Canto IX
Relato dos últimos acontecimentos na Índia; há perigo de navios vindos de Meca destruírem os portugueses. Vasco apressa a partida, iniciando a viagem de volta.
Como prêmio, os navegadores param na Ilha dos Amores e recebem o carinho das ninfas. Vasco da Gama ama Tétis.
Canto X
Descrição da Ilha dos Amores e dos favores das ninfas. Há uma descrição do universo e a exaltação dos feitos portugueses. Regresso a Lisboa.
-Epílogo: é o final do poema, abrangendo as estrofes 145 a 156 do Canto X. O Epílogo inicia-se com uma das mais belas e angustiadas estrofes de todo o poema, na qual o poeta mostra-se triste, abatido, desiludido com a Pátria, que não merece mais ser cantada:
Estrofe 145
“No’mais, Musa, no’mais, que a lira tem
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho,
Não no dá a Pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.”
TEXTO 1
Estrofe 106, Canto I
No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
TEXTO II
Estrofe 37-40, Canto V
Porém já cinco Sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca de outrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando uma noite, estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Uma nuvem, que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.
Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo.
Bramindo, o negro mar de longe brada,
Como se desse em vão nalgum rochedo.
-“Ó Potestade- disse sublimada,
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tomenta?”
Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura,
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida,
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-se que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso.
Que um dos sete milagres foi do mundo.
Cum tom de voz nos fala horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.
A propósito dos textos
1-Qual a relação estabelecida pelo Poeta entre o homem e o Céu?
2-Haverá um lugar “onde o homem terá segura sua curta vida”?
3-Na música “Os argonautas”, Caetano Veloso lembra os versos camonianos e as palavras de Fernando Pessoa, ao afirmar:
“O barco
meu coração
não agüenta
tanta tormenta
alegria
meu coração
não contenta
o dia, o março
meu coração
o porto, não
navegar é preciso
viver não é preciso”
Navegar pode ter seu significado ampliado, ter um sentido conotativo.
Como você o interpreta?
4- As estrofes do texto 2 pertencem a um famoso episódio de Os lusíadas. Qual é o episódio? Qual o seu significado no contexto do poema?
5- Potestade significa ‘autoridade’, ‘poder’. E Rodes o que seria? Qual a relação que tem com “um dos sete milagres do mundo”?
Exercícios e testes
1- O poeta
“Este, de sua vida e sua cruz
Uma canção eterna solta aos ares.
Luís de ouro vazando intensa luz
Por sobre as ondas altas dos vocábulos.”
Nestes versos de Carlos Drummond de Andrade destacam-se dois sentidos para a navegação do Luís. Quais são?
2- O professor Hernani Cidade, na abertura de seu livro A literatura portuguesa e a expansão ultramarina, narra o seguinte episódio:
“Quando os nautas do Gama desembarcaram em Calecute, foi um deles interrogado sobre os motivos da viagem, e consta que respondeu:
‘-Viemos buscar cristãos e especiarias’.
Dava o marinheiro, na singeleza da resposta, a completa finalidade dos objetivos: a mistura, bem humana, da ganância comercial com proselitismo religioso.”
Relacione a resposta do marinheiro português com o momento histórico que marcou a viagem de Vasco da Gama às Índias (1497-99).
3- Um dos mais famosos sonetos de Camões assim se inicia:
“Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.”
Você diria que no quarteto apresentado podemos perceber a visão platônica que Camões tem do amor? Por quê?
4- Leia para analisar:
“Destarte, enfim, conformes já as fermosas
Ninfas com seus amados navegantes,
Os ornam de capelas deleitosas
De louro e de ouro e flores abundantes.
As mãos alvas lhe davam como esposas;
Com palavras formais e estipulantes
Se prometem eterna companhia,
Em vida e morte, de honra e alegria.”
Quem escreveu a estrofe acima?
a) Luís de Camões c) Gil Vicente e)Antero de Quental
b)Almeida Garrett d)Fernando Pessoa
5- Veja o poema que se segue:
“No mar, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida;
Na terra, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequena?”
Nessa estrofe, Camões:
a) exalta a coragem dos homens que enfrentam os perigos do mar e da terra.
b) considera quanto o homem deve confiar na providência divina que o ampara nos riscos e adversidades.
c) lamenta a condição humana ante os perigos, sofrimentos e incertezas da vida.
d) propõe uma explicação a respeito do destino do homem.
e) classifica o homem como um bicho da terra, dada a sua agressividade.
6- Assinale a correta: Camões...
a) nasceu no dia 10 de junho de1580.
b) escreveu uma epopéia publicada no ano de 1572.
c) tomou a Divina Comédia como modelo de seu poema.
d) foi amigo de Gil Vicente, com quem conviveu na corte.
e) esteve na Itália, de onde levou para Portugal os princípios da estética clássica.
7- O poema Os lusíadas, de Camões, se inclui entre as produções poéticas de forma fixa. Encerra 8.816 versos, todos com o mesmo número de sílabas. Que número é esse?
a)5 b)7 c)12 d)10 e)n.d.a.
8- A “oitava rima”, trazida da Itália por Sá de Miranda, foi adotada por Camões no poema Os lusíadas. Qual a disposição correta da “oitava rima”?
a) o 1º. com o 2º., o 3º. com o 4º., o 5º.com o 6º., o 7°.com o 8º.
b) o 1º. com o 3°.e o 5º., o 2º.com o 4º.e o 6º., o 7º.com o 8°.
c) o 1º. com o 3º., 5º.e 7º.;o 2º.com o 4º.,6º.e 8º.
d) n.d.a.
9- Camões distinguiu-se, na literatura portuguesa, entre outras razões:
a) por ter sido o primeiro escritor clássico de Portugal
b) por ter sido o maior caricaturista da sociedade portuguesa do século XVI
c) por ter criado o teatro popular
d) por ter escrito a melhor interpretação poética dos valores espirituais, morais e cívicos distinguiam a civilização portuguesa.
10- Na proposição de Os lusíadas, Camões afirma que vai cantar:
a) as navegações de Grécia e Tróia.
b) o que a musa antiga canta
c) as obras valorosas dos antigos romanos
d) as guerras, as navegações, a história dos reis e dos homens ilustres portugueses.
11- Em Os lusíadas, Camões:
a) narra a viagem de Vasco da Gama às Índias.
b) tem por objetivo criticar a ambição dos navegantes portugueses que abandonam a pátria à mercê dos inimigos para buscar ouro e glória em terras distantes.
c) afasta-se dos modelos clássicos, criando a epopéia lusitana, um gênero inteiramente original na época.
d) lamenta que, apesar de ter dominado os mares e descoberto novas terras, Portugal acabe subjugado pela Espanha.
e) tem como objetivo elogiar a bravura dos portugueses e o faz através da narração dos episódios mais valorosos da colonização brasileira.
12- Na Lírica de Camões,
a) o metro usado para a composição dos sonetos é a redondilha maior.
b) encontram-se sonetos, odes, sátiras e autos.
c) cantar a Pátria é o centro das preocupações.
d) encontra-se uma fonte de inspiração de muitos poetas brasileiros do século XX.
e) a Mulher é vista em seus aspectos físicos, despojada de espiritualidade.
13- Camões escreveu obra épica ou lírica? Justifique sua resposta, exemplificando com obras do autor.
14-No poema:
“Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não nó dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
De uma austera, apagada e vil tristeza.”
Os versos acima pertencem a que parte de Os lusíadas?
a) Proposição b) Invocação c) Dedicatória
d) Narração e) Epílogo
As duas questões a seguir referem-se ao fragmento:
“Converte-se-me a carne em terra dura;
Em penedos os ossos se fizeram;
Estes membros que vês e esta figura
Por estas longas águas se estenderam,
Enfim, minha grandíssima estatura
Neste remoto cabo converteram
Os deuses; e, por mais dobradas mágoas,
Me anda Tétis cercando destas águas.”
15- Tem-se a figura do Gigante Adamastor criada pelo poeta:
a) português, Luís de Camões, em Os lusíadas
b) brasileiro, Basílio da Gama, em O Uruguai
c) português, Pe. Antônio Vieira, em Sermão de Sexagésima
d) brasileiro, Mário de Andrade, em Macunaíma
e) n.d.a.
16- Afigura da retórica que compõe o texto é:
a) metáfora: “consiste na transferência do nome de um elemento para outro, em vista de uma relação de semelhança entre ambos”.
b) prosopopéia: “atribui vida, ou qualidades humanas, a seres inanimados, irracionais, espécie de animismo”.
c) paronomásia: vocábulos semelhantes na forma, mas opostos ou aparentados no sentido.
d) metonímia: emprego de um vocábulo por outro, com o qual estabelece uma constante e lógica relação de contigüidade.
17- “Nem cinco sóis eram passados que de vós nos partíramos, quando a mais temerosa desdita pesou sobre nós. Por uma bela noite dos idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã; que outrem grafara muraquitã, e alguns doutos, ciosos de etimologias esdrúxulas, ortografam muyrakitan e até mesmo muraquéitã, não sorriais!”
Neste fragmento da “Carta pras Icamiabas”, em Macunaíma, de Mário de Andrade, encontramos:
a) uma paródia do estilo clássico lusitano.
b) um elogio à eloqüência dos parnasianos.
c) a valorização da linguagem utilizada pela estética do século XVIII.
d) uma apologia do estilo pretensioso e da oratória vazia de conteúdo.
e) uma sátira aos romances indianistas do século XIX.
18- No poema:
“Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio,
O mundo todo abarco e nada aperto.
É tudo quanto sinto, um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao céu voando,
Num’hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar um’hora.
Se me pergunta alguém por que assi ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só por que vos vi, minha senhora.”
O soneto acima transcrito é de Luís de Camões. Nele se acha uma característica da poesia clássica renascentista. Assinale essa característica, em uma das alternativas:
a) a suspeita de amor que o poeta declara na conclusão.
b) o jogo de contradições e perplexidades que atormentam o poeta.
c) o fato de todos perguntarem ao poeta porque assim anda.
d) o fato de o poeta não saber responder a quem o interroga.
e) a utilização de um soneto para relato das suas amarguras.
19- No poema:
“Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar uma donzela,
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la).
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.”
A estância acima transcrita pertence a Os lusíadas de Luís de Camões, e faz parte de um dos mais conhecidos “episódios” daquela obra. Indique-o nas alternativas abaixo assinaladas:
a) Episódio da Ilha dos Amores.
b) Episódio do Gigante Adamastor.
c) Episódio de Inês de Castro.
d) Episódio dos Doze de Inglaterra.
e) Episódio da Batalha de Aljubarrota.
20- Sobre a lírica camoniana, é incorreto afirmar que:
a) boa parte de sua realização se encontra na poesia de inspiração clássica.
b) sua temática é variada, encontrando-se desde temas abstratos até tradicionais.
c) no aspecto formal, é toda construída em versos decassílabos em oitava rima.
d) sonda o sombrio mundo do “eu”, da mulher, da Pátria e de Deus.
e) muitas vezes, o poeta procura conceituar o Amor, lançando mão de antíteses e paradoxos.
Espaço de Leitura e Literatura Brasileira em diálogo com outras literaturas e outras mídias
segunda-feira, 24 de maio de 2010
segunda-feira, 10 de maio de 2010
TEXTO 03 - AS LINGUAGENS DA MONSTRUOSIDADE ENTRE O MUNDO MEDIEVAL E MODERNO
Cristina Maria Teixeira Martinho (USS/RJ)
Cadernos do CNLF , Vol. XIII, Nº 04
Anais do XIII CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2009.
Estamos assistindo a um renovado interesse pelas imagens e textos disformes, grotescos e monstruosos por todos os lados – nocinema, nos desenhos animados, nas revistas em quadrinho, nos jogos da internet. São representações que invadem o planeta, tornando o que era amedrontador, em algo simplesmente familiar, cotidiano, não apenas porque a violência e o mal se banalizaram, mas porque estas narrativas contêm elementos que fascinam o homem de hoje, parecendo demonstrar serem ainda portadoras de mitos vivos com significado atemporal. Nas palavras de José Gil,
O homem ocidental contemporâneo já não sabe distinguir com nitidez
o contorno de sua identidade no meio dos diferentes pontos de referência.
(...) Daí o intenso fascínio atual pela monstruosidade. Os monstros
são-lhe absolutamente necessários para continuar a crer-se homem
(1994, p. 12).
Os monstros são como heróis porque representam o que a sociedade, em nome da normalidade, inconscientemente reprime. Contudo, ao elucidar o que considera serem os aspectos libertadores e elevados dos monstros, a sociedade perde de vista a natureza essencialmente repulsiva deles. As obras de horror não podem ser interpretadas nem como completamente repelentes nem como completamente
atraentes. Sua leitura torna-se bem mais produtiva quando enriquecida por uma dimensão histórica, na qual o monstruoso se torna significativo não apenas como fantasia exótica, mas como história social.
Nesse contexto, a pergunta relevante diz respeito não fundamentalmente à forma e às variações formais da monstruosidade, mas principalmente às funções de tal forma em certos momentos históricos
e às variações de tais funções no devir temporal. De certa maneira, poder-se-ia dizer que nos identificamos com os monstros por causa do poder que eles possuem - talvez por satisfazerem anseios.
O monstro é, de certo modo, a forma espontânea, a forma brutal,
mas, por conseguinte, a forma natural da contranatureza. É o modelo
ampliado, a forma, desenvolvida pelos próprios jogos da natureza, de todas
as pequenas irregularidades possíveis. E, nesse sentido, podemos dizer
que o monstro é o grande modelo de todas as pequenas discrepâncias.
É o princípio de inteligibilidade de todas as formas - que circulam na
forma de moeda miúda - da anomalia. Descobrir qual o fundo de monstruosidade
que existe por trás das pequenas anomalias, dos pequenos
desvios, das pequenas irregularidades é o problema que vamos encontrar
ao longo de todo o século XIX. (Foucault, 2002, p. 71)
O monstro é a figura essencial, em torno da qual as instâncias de poder e os campos de saber se inquietam e se reorganizam. No direito romano, que evidentemente serve de pano de fundo para toda essa problemática do monstro, distinguiam-se com cuidado, se não com clareza, duas categorias: a categoria da deformidade, da enfermidade, do defeito (o disforme, o enfermo, o defeituoso, é o que chamavam de portentum ou ostentum), e o monstro, o monstro propriamente dito.
Cada cultura, ao lado de uma concepção adequada do Belo, sempre colocou a própria ideia do Feio. A problemática do Feio se faz complexa, sobretudo a partir da era histórica, com o advento da sensibilidade cristã e da arte que a exprime. A dor, o sofrimento, a morte, as deformações físicas são ressaltadas na articulação com as figuras grotescas, disformes e monstruosas. Amados e temidos, mantidos sob vigilância, os monstros, entendidos como violações das categorias culturais vigentes, penetram cada vez mais, com todo o fascínio do horrendo, na literatura e na arte, manifestando distorções realizadas com base na linguagem metafórica conhecida. Neste trabalho, procuro analisar as representações, na arte medieval e moderna, da estética e da política do grotesco e do demoníaco que, ao engendrar seus monstros, violam as categorias culturais vigentes e ilustram os medos e as expectativas do mapa cognitivo de uma dada sociedade.
O imaginário articula todas as ações do ser humano. Fenômeno coletivo, social e histórico, o imaginário de uma época precisa recuperar suas produções características vigentes entre o belo e o sinistro, o real e o estranho, a identidade e a diferença. A maneira de percebermos as formas que consideramos monstruosas questiona as concepções sobre a vida, a linguagem, o cosmos, a imaginação criadora, o princípio da negatividade. Trata-se de um saber informe e gigantesco, feito de pedaços que misturam o irracional e o delirante, uma mistura de ideologias. É um passeio formidável e representa a importância do tema da teratologia e de como a sua função na sociedade varia de acordo com os tempos.
Sendo um dado cultural, a monstruosidade precisa de que a cultura propicie as convenções e assertivas da norma determinante de suas forças particulares. Ao estabelecer as condições de ordem e coerência, ela especifica quais as categorias que lógica ou genericamente são incompatíveis umas com as outras. Apesar de uma aceitação cada vez mais acentuada das categorias da monstruosidade, do disforme, do grotesco, do estigma em nossa sociedade, estas se tornam menos atuantes porque aceitamos e toleramos a desordem como passível de existir no mundo real. Em tempos mais "inocentes", era possível delinear o belo e o grotesco, o normal e o anormal; mas, atualmente, com tantos produtos híbridos, a figura imaginária do
monstro perde um pouco a sua eficácia.
Naturalmente, as figuras monstruosas e grotescas existem desde que o homem procurou expressar o seu imaginário na arte. O Livro da Revelação, a Odisseia, Beowulf, A Divina Comédia, são exemplos de textos contendo cenas de violência e imagens da diferença.
Monstros e demônios são sempre representados na arte, e a Idade Média é uma época que vê vários tipos grotescos reaparecerem para ilustrar os medos e expectativas causadas pelas mudanças exteriores ao homem. As viagens e peregrinações são ilustradas por diversos tipos estranhos.
Na mitologia clássica greco-romana, o monstro é apresentado
como uma criatura composta de várias partes diferenciadas de seres
vivos, combinando diferentes tipos de criaturas, como no caso dos
centauros e dos sátiros; algumas vezes, é o excesso a marca da diferença,
como a hidra, as górgonas. A hidra é a serpente monstruosa,
suas sete ou nove cabeças renascem à medida que são decepadas, e
as górgonas, três irmãs, três monstros, com a cabeça aureolada por
serpentes enfurecidas, tem presas de javali saindo dos lábios, mãos
de bronze e asas de ouro. Estes padrões explicitam o grau político
existente na cadeia semântica da palavra ‘monstruosidade’. Como
vemos nesta tela de Rubens, os cabelos da figura mitológica são frequentemente
representados nas obras de arte sob a forma de serpentes.
A visão da cabeça da Medusa torna o espectador rígido de terror,
transforma-o em pedra, segundo a lenda.
A imagem da monstruosidade é propriamente "algo mais que
a verdade, real ao extremo, e não uma coisa arbitrária, falsa, absurda
e contrária à realidade", diz-nos Thomas Mann (Apud Harpham, p.
XIX), embora o monstro tenha sido considerado, na Antiguidade, o
próprio oposto do real.
E como uma imaginação sardônica que extrapola os limites na criação
de monstros infindáveis, onde as alucinações se tornam palpáveis, os
temores medievais se espalham vertiginosa e opressivamente, e mostram
a danação de toda a vida humana, de toda a natureza, em sonhos satânicos
infindáveis (Ibiden).
Destes fantasmas terríveis ecoam os demônios monstruosos
que enfeitam as catedrais góticas. O monstro existe e confirma a ordem
divina da criação. As Gárgulas eram os guardiões das catedrais
e, acreditava-se que ganhavam vida a noite.
Jurgen Baltrusaitis (1999) comenta terem sido publicadas nos
últimos vinte anos do século XVI sete edições contendo gravuras
com seres monstruosos: homens com duas cabeças, seis braços, sereias
com duas caudas, seres híbridos de diversos tipos. O primeiro
tratado de Zoologia se apresenta como uma teratologia e uma lenda.
Paralelo a estas imagens está o universo infernal de todos os castigos
e aflições, tudo detalhado: os amaldiçoados do inferno, os supliciados
por demônios, dragões e serpentes em imagens repulsivas e aCadernos
medrontadoras. O inferno é tema obsessivo na Idade Média e nos séculos
sucessivos. O fiel é aterrorizado por uma descrição dos tormentos
infernais; imagem obsessiva, opressiva, o inferno está permanentemente
presente em todos os espíritos. Talvez fosse o germe
mais virulento do medo que atormentava as pessoas daquela época.
Gárgulas de Notre Dame. (In: ECO, p. 46)
Horácio inicia sua Arte poética tratando deste problema:
Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a uma cabeça humana
um pescoço de cavalo, ajuntar membros de toda procedência e cobrilos
de penas variegadas, de sorte que a figura, de mulher formosa em cima,
acabasse num hediondo peixe preto; centrados no quadro, meus amigos,
vocês conteriam o riso? Creiam-me, Pisões, bem parecido com
um quadro assim seria um livro onde se fantasiassem formas sem consistência,
quais sonho de enfermo, de maneira que o pé e a cabeça não se
combinassem num ser uno. (Apud Brandão, p. 55)
Conhecidos como ‘drôleries’, tolices, os motivos decorativos
que ilustram as margens de certos manuscritos medievais revelam
uma composição fantasiosa e grotesca destas criaturas híbridas comentadas
por Horácio, com seres mistos, uma mistura de animais os
mais diversos, entre homem e animal, ou entre homem e planta, e até
mesmo de objetos inorgânicos, como podemos ver na pintura abaixo:
Luca de Leida – Triptico do Juízo final. 1527 (In: ECO, p. 89)
Les Heures de Croy – Séc. XVI. (In: ECO, p. 47)
Esta ênfase na simbologia do monstruoso não significa que a
cultura medieval não acredite na realidade do monstro, até porque a
própria natureza oferece evidências. Santo Agostinho não tem dúviCadernos
do CNLF , Vol. XIII, Nº 04
Anais do XIII CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2009, p. 266
das nem da existência de pigmeus e nem de deformações como as
que ocorrem em seres humanos "nascidos com mais de cinco dedos",
ou com "duas cabeças, dois peitos e quatro braços, mas com apenas
um ventre e dois pés". E apressa-se a ensinar aos cristãos que tais deformidades
tem o seu lugar na ordem criada por Deus: "não se deve
considerar incoerente que, da mesma forma que existem certas
monstruosidades nas várias raças humanas, existam também no conjunto
de toda a humanidade certos povos monstruosos" (Apud Eco,
2007, p. 102). O monstro medieval participa tanto do mundo material
como do espiritual. Constitui, por assim dizer, a fronteira entre as
duas dimensões, e é, simultaneamente, uma realidade e um discurso
simbólico de conhecimento, estabelecendo sempre entre ambos uma
possibilidade de contato. E Agostinho continua:
Pergunta-se além disso, se é crível que dos filhos de Noé, ou, melhor,
de Adão, de quem esses também precedem, se hajam propagado
certas raças de homens monstruosos de que a história dos povos dá fé.
Assegura-se, com efeito, que alguns têm um olho no meio da testa, que
outros têm os pés virados para trás, que outros possuem ambos os sexos,
a mamila direita de homem e a esquerda de mulher, e que, servindo-se
carnalmente deles, alternativamente, geram e dão à luz. Também contam
que alguns não têm boca e vivem exclusivamente do ar, respirado pelo
nariz. Afirmam que outros têm um côvado de altura e por isso os gregos
os chamam de pigmeus e que em algumas regiões, as mulheres concebem
aos cinco anos e não vivem mais de oito. Contam de igual modo,
existirem homens de velocidade espantosa e que, no verão, deitado de
costas, se defendem do sol com a sombra dos próprios pé. (...) Deus, criador
de todas as coisas, conhece onde, quando e o que é ou foi oportuno
criar e, ademais, conhece a beleza do universo e a semelhança ou diversidade
das partes que a compõem. (...) Assim, para concluir essa questão
com circunspecção e prudência, direi que não passam de pura novela as
coisas escritas sobre algumas nações, que, se se trata de realidade, não
são homens, ou que, se homens, descendem de Adão. (Apud, Gil, 1994,
p. 28).
Não apenas os monstros concorrem para dotar de variedade à
harmoniosa beleza do universo, como também ressaltam a tese do filósofo
segundo a qual a aparição de um homem monstruoso não deve
ser considerada um erro da natureza. O resultado da discussão agostiniana
é que as raças monstruosas vão poder ser tratadas como
mirabilia, essas curiosidades maravilhosas da natureza, constantemente
inventariadas pelos autores latinos. Gil ainda acrescenta que
os monstros são criações estranhas da Natureza e de Deus e Agostinho
abre a porta à admiração perante as maravilhas incompreensíveis
da Criação. (1994, p. 33). A Natureza será dividida em dois espaços
– o da ordem, sagrada ou profana, e o do maravilhoso, do desconhecido,
do inesperado. Esta classificação articula a desordem, o desafio
e a ameaça. A literatura medieval, as canções de gesta, os relatos de
peregrinações estão repletos de monstros, de demônios, de fadas, de
criaturas provenientes do folclore popular. Na representação abaixo,
vemos articulado o mundo cheio de fronteiras, com seres deformados,
exorbitados em relação à experiência comum.
Hieronymus Bosch é um dos pintores mais conhecidos desta
linha insólita e grotesca. Membro de uma Confraternidade de Nossa
Senhora (Eco, 2006, p. 102-105), Bosch articula, em suas representações,
uma série de alegorias moralizantes, férteis representações da
pintura estranha. O “Jardim das Delícias” é um quadro que ilustra esta
arte bizarra: dividido em três partes, introduz a figura de Eva no
Jardim do Paraíso, seguido por uma ilustração do título; conclui com
uma visão do inferno. Nesta pintura, não temos apenas visões sulfurosas
do além, mas também cenas sensuais e idílicas, que, no entanto,
são terrivelmente inquietantes, refletindo as imagens de vícios da
sociedade e demonstrando que o mundo dos prazeres terrenos pode
nos levar ao inferno.
No painel da esquerda, chamado Paraíso terrestre, o artista
retrata a criação de Adão e Eva, tendo como cenário uma paisagem
exótica e nada parecida com a imagem do Paraíso descrito na Bíblia.
Entre os animais, há alguns – como o unicórnio – em cuja existência
se acreditava, mas que não existia. O único fruto proibido estava na
árvore do conhecimento, à direita. Os animais já se alimentam uns
dos outros: o gato como um rato; no primeiro plano, pássaros devoram
sapos e rãs. O homem deveria elevar-se acima deste comportamento
animal.
No painel central, O Jardim das Delícias, temos a representação
da loucura, dos prazeres, em especial, a luxúria; aqui aparece o
ato sexual de onde se descobrem todos os prazeres carnais, prova de
que o homem perdera a graça. Enormes morangos representam os
prazeres da carne. O ‘pecado original’ da humanidade foi comer o
fruto proibido. Na linguagem medieval, colher frutos significava fazer
sexo. Estranhas personagens, frutos e aves, peixes e outros animais,
parecem realizar um movimento delirante. Adão, a única pessoa
vestida no quadro, está sentado com Eva, na boca de uma caverna,
no canto inferior direito. Segundo escritos apócrifos, os dois se
refugiaram numa caverna depois de expulsos do Jardim do éden.
No painel da direita, O Inferno musical, vemos representada a
condenação ao inferno; nela o pintor descreve um palco apoteótico e
cruel, no qual o ser humano é condenado pelo seu pecado. No alto do
painel há uma imagem típica do inferno, com fogueiras ardentes
cuspindo enxofre. Abaixo, vemos uma foice que parece um tanque
em formato fálico, feito de duas orelhas e uma lâmina.
As visões do pintor dos castigos infernais são tão terríveis quanto fantásticas. Um
soldado nu é atravessado por uma lança; um outro soldado armado é
comido vivo por dragões. Um bando de demônios ataca um grupo de
pecadores com facas, lanças e espadas. No canto inferior direito,
uma criatura semelhante a um pássaro devora vítimas humanas, e
depois as defeca num poço de excremento e vômito.
No alto da pintura, estruturas bizarras, de vegetais também
mecânicos, repetem movimentos circulares e crescem suavemente
em direção ao céu, cuspindo pássaros e figuras ainda não identificáveis.
À esquerda está o painel mais grotesco de todos: Deus apresenta
Eva a Adão, enquanto, por trás, animais deformados dançam loucamente
e dilaceram com ferocidade os animais capturados. Tudo
muito estranho; encontramos o estilo e o conteúdo presentes em murais
antigos revividos pela imaginação renascentista. Estas linhas, intrigantemente
esquematizadas, cheias de uma mistura incongruente e
fantástica que desafiam as leis do equilíbrio e da Física, ameaçam a
noção da ordem, fundindo categorias que introduzem um novo tipo
do demoníaco no mundo.
Em outro quadro, As tentações de Santo Antão, Bosch materializa,
em forma apocalíptica, as visões do fim do mundo; desenhos e
pinturas retratam as profecias em que o homem é fustigado por demônios
irados e vingativos; o clima sombrio traduz os tormentos da
época, as crenças de uma formação religiosa rígida, nos moldes da
igreja medieval vigente na Holanda, que brevemente seria abalada
pelo surgimento da Reforma. Aqui o mundo é grotesco e sente-se ao
seu redor o ar putrefato e corrupto.
O cenário é fantástico, mágico, vislumbra o macabro, traz incêndios e monstros imaginários. Há um
demônio com crânio de cavalo a tocar alaúde; um peixe metade gôndola, engole um homem; uma mulher com calda de lagarto cavalga uma ratazana. Numa época em que o Renascimento traduz corpos
perfeitos e nos contempla com imagens do belo, as imagens das pinceladas de Bosch dão passagem para o bizarro. O homem espera o Juízo Final.
Na época da Reforma, Lutero também relaciona os seres grotescos e a deformidade como uma maneira de Deus combater a corrupção das pessoas e das nações e recompensar os justos. Umberto Eco (2006) assinala que:
Em seus escritos, Lutero irá identificar muitas vezes o pontífice romano
tanto com o diabo quanto com o Anticristo. Lutero é obcecado pe
lo diabo e a lenda reza que, em uma de suas aparições, ele o expulsou jogando-
lhe um tinteiro. (...) Já no filósofo e na tradição protestante ganha
espaço a concepção de que o diabo identifica-se com os vícios dos quais
se torna símbolo. (p.101)
Os demônios atacam os humanos para embaraçar o reino de
Deus. Ele trabalha com a natureza, iludindo a mente, sugestionando
e formando ilusões observáveis pelos sentidos. Com uma forma
monstruosa, com chifres em diversas partes do corpo, reflete a monstruosidade
moral interna de Lúcifer.
Na literatura do Renascimento vários autores utilizam imagens
do monstro para ilustrar temas como usurpação, lutas pelo poder,
recursos utilizados por William Shakespeare, que em várias de
suas peças mantém o sentido para a imagem do monstro, com o objetivo
de educar e servir de parâmetro para convenções e comportamentos
tradicionais. Um dos mais citados e representados dramaturgos
de todos os tempos, tem um legado que até hoje influencia todos
os tipos de literatura e expressões artísticas modernas. Deixa uma
obra repleta de referências à imortalidade da alma, a espíritos benignos
ou malignos, a fadas, duendes, lugares encantados, bruxarias e
sortilégios. Nelas, os valores humanos são questionados e confrontados
com valores espirituais, isso de forma dramática e às vezes cômica.
Em A Tempestade (1611), encontramos Próspero, antigo Duque
de Milão, invocando forças sobrenaturais para trazer à pequena
ilha em que fora abandonado, o navio dos nobres que arruinaram sua
vida. Próspero consegue manobrar a força dos ventos e das águas para
provocar o naufrágio. Na ilha, é mestre de criaturas encantadas
como Ariel, espírito do Ar, e de outros espíritos da natureza. Com a
descoberta do Novo Mundo, são encontradas populações de costumes
selvagens. Shakespeare vai nos falar do horrendo e infeliz Caliban
nesta peça:
O que é isso? É homem ou peixe? Está vivo ou morto? É peixe! O
cheiro é de peixe, um fedor muito antigo e peixoso, de badejo nada novo.
Que peixe esquisito! Se eu estivesse na Inglaterra, agora, como já estive,
e mandasse pintar esse peixe, não passava de um otário de um forasteiro
que não me desse por ele uma moeda de prata; lá qualquer monstro faz
um homem de qualquer um. Não dão um vintém para aliviar um mendigo,
mas desperdiçam dez para ver um índio morto. Tem perna feito homem!
E as nadadeiras parecem braços! Palavra que está quente! Agora
vou libertar minha opinião, que não seguro mais: isto não é um peixe, é
um ilhéu que acaba de ser atingido por um raio. (Apud Eco, p. 127).
Calibã é um monstro disforme e selvagem, filho da terrível
bruxa Sicorax. O mago Próspero faz tudo para civilizar Calibã, mas
seus esforços são inúteis. O personagem monstruoso permanece
preso à sua animalidade e funciona como uma metáfora clara da face
egoica, irracional e instintiva, do homem.
Sonhos de Uma Noite de Verão (1598) traz o duende Puck
intermediando as relações de Hipólita, Rainha das Fadas, e de
Oberon, Rei dos Elfos. Puck também interfere nas relações humanas,
a mando de Oberon, manejando poções do amor e magias diversas.
O destino das pessoas é resolvido em contato com espíritos da
natureza. Nestas duas peças, Shakespeare põe monstros em cena. Os
filólogos consideram a origem diabólica de Puck – é simplesmente
um dos nomes do diabo, usado – como o do lobisomem e o dos
íncubos – para assustar mulheres e crianças. Puck pode multiplicarse
com facilidade e ainda diz ‘Posso circundar a Terra em quarenta
minutos’ (Ato II, 1).
Podemos também apontar semelhanças entre Puck e Ariel, que lançam um feitiço sobre os que passeiam, levando os a um mau caminho, e transformam-se em fogos-fátuos sobre os
pântanos. Esta sempre foi a ocupação favorita de todos os diabos
populares e as duas personagens entregam-se a ela com deleite. Ariel
metamorfoseia-se em quimera e em harpia; morde Calibã, pica-o,
belisca-o, faz-lhe cócegas até enlouquecê-lo.
Em Macbeth, (1596) Shakespeare já começa pondo as três
assustadoras Bruxas da Charneca a serviço de conspirações. Logo no
início, seu caldeirão ferve enquanto elas conjuram preces para
destruir os inimigos de seu senhor. As aparições, mais demoníacas
do que divinas, estão muito mais relacionadas à bruxaria do que à
religião. São seres amedrontadores, que funcionam como um canal
de comunicação entre as bruxas e o demônio.
O principal exemplo são as grotescas figuras invocadas pelas feiticeiras de Macbeth, na
Cena I, Ato IV: uma cabeça vestindo um capacete, que incita
Macbeth contra ser rival Macduff, barão de Fife; uma criança
ensanguentada, que profetiza que "ninguém nascido de mulher pode
molestar Macbeth"; uma criança coroada com um galho na mão, que
lança a famosa profecia: "Macbeth só será vencido quando o grande
bosque de Birmam, subindo a alta colina de Dunsinane, marchar
contra ele"; e, finalmente, a aparição de uma fila de oito reis, o
último tendo um espelho na mão. Atrás deles, mais uma vez, o já
conhecido fantasma de Banquo.
Para Shakespeare, a monstruosidade é menos um tema de
prodígios e deformidades fisiológicas, do que um modo de definir
um comportamento imoral ou aberrante, como atestam as palavras de
Antônio em The Twelfth Night:
In the nature there’s no blemish but the mind
None can be call’d deform’d but the Unkind. ( III, 4-376-7)
Ser um monstro é romper os elos naturais dos compromissos
familiares e sociais. Em Henrique IV (1598-1600), Shakespeare apresenta
o retrato de Falstaff:
E há um diabo que te assombra na forma de um velho gordo, tens
por companheiro um monte de carne. Por que conversas com esse feixe
de humores, esse barril de bestialidade, esse pacote de inchaços, esse
vasto odre de vinho, essa sacola recheada de tripas, esse boi de Manningtree
assado com pudim na barriga, esse vício idoso, essa iniquidade grisalha,
esse pai de rufiões, essa vaidade idosa. Em que é ele bom, senão
para provar e beber vinho? Em que correto e limpo, senão para cortar e
comer capões? Em que inventivo, senão em esperteza, em que esperto,
senão em vilanias? Em que vilão, senão em todas as coisas? Em que meritório,
senão em nada? (Apud Eco, Ato II, p. 4)
Michel Foucault relembra, em seus comentários sobre a visita
aos internos de hospitais e asilos de loucos, que a palavra "monstro"
designa alguma coisa ou alguém que irá ser mostrado aos outros
(confronte-se, a propósito, o latim monstrare com o francês montrer,
o inglês demonstrate e o português mostrar). Diz o filósofo:
O hábito da Idade Média de mostrar os insanos era, sem dúvida,
muito antigo. Em algumas das Narrturmer da Alemanha, haviam sido
abertas janelas gradeadas que permitiam observar, do lado de fora, os
loucos que lá estavam. Constituíam eles, assim, um espetáculo às portas
da cidade. Fato estranho é que esse costume não tenha desaparecido no
momento em que se fechavam as portas dos asilos, mas que, pelo contrário,
ele se tenha desenvolvido, assumindo, em Paris e em Londres, um
caráter quase institucional. Ainda em 1815, a acreditar-se num relatório
apresentado na Câmara dos Comuns, o hospital de Bethleem exibe os furiosos
por um penny, todos os domingos. (...) O desatino ocultava-se na
descrição das casas de internamento, mas a loucura continua a estar presente
no teatro do mundo. (p.146-7).
Num mundo onde a lógica divina estabelece suas prioridades,
alguém que se apresente de forma diferente, como um aleijão ou com
alguma deformidade, representa as consequências do vício, da perversidade,
da desrazão, como um aviso da cólera divina. A cultura do
Iluminismo mantém o monstro como foco de sentido negativo para
se entender o mundo natural. Roberto Romano cita o surgimento, pela
via científica, não apenas da teratologia, mas a da teratogênese,
com todas as suas produções imaginárias ou efetivas”. (2003, p. 39)
Wolfgang Kayser, um dos mais renomados críticos da arte,
explicita estas características:
(…) as figuras grotescas, distorcidas e deformadas, monstruosas,
não mantêm nenhuma relação com o real. Contudo, podemos perceber
que as normas empíricas de verossimilhança em sua tradição, não são
adequadas para explicitar a totalidade desta arte insólita. As figuras grotescas
não são imitações abortivas de uma visão racional do mundo, mas
delineiam a subversão da ideia de que a realidade é uma construção objetiva,
previsível e compreensível . (1999, p. 20)
A interdição de combinações ridículas e grotescas torna-se, na
Era da Razão, o texto básico preconizado pelas regras da estética neoclássica
do decoro e da imitação da Natureza. A transgressão destas
regras constitui a categoria do grotesco. Estas misturas estranhas e
bizarras passam a ser discutidas como um problema relevante para o
Romantismo. Um sentimento inquietante, que diz respeito à responsabilidade humana nesta concepção, desenvolve-se a partir dos usos subsequentes da imagem da monstruosidade, uma vez que, desde as
hidras de Horácio até os monstros criados pela fantasia poética, a
imagem monstruosa da organização política volta-se cada vez mais
para o indivíduo, não como produto final da natureza, mas como a
falibilidade do humano.
Da percepção deste hiato entre a natureza e a cultura, o temor
de que a própria sociedade humana possa produzir monstros emerge
já no final do século XVII. O Leviatã gigante de Hobbes é lembrado
como um mito que reflete a fragmentação e o desmembramento do
antigo corpo político encarnado na autoridade pessoal de governantes
feudais ou absolutistas. A figura do Leviatã assinala uma percepção
crescente, acentuada entre o regicídio e a revolução, de um destino
que não mais compactua com a natureza, mas é moldado pela
arte, pela política. Quando a revolução e o regicídio retornam à agenda
da história europeia, sobretudo com a Revolução Francesa e as
demais revoluções que ocorrem no século XIX, estes espectros grotescos,
monstruosos, são revividos.
A figura da monstruosidade resiste particularmente a qualquer
tentativa de uma síntese imediata, ainda mais quando se trata do século
XVIII clássico, singularmente radical quanto à figura monstruosa
na arte. O monstro permanece o ponto frágil das fundamentações
do sistema estético clássico, como ameaça para aqueles que querem
estabelecer este sistema, ou como o ponto de suas interrogações. O
monstro pode ser real, acidental, mas não é natural, e, no que diz
respeito à representação, não é consequência da verossimilhança, não
deve ter existência no mundo real.
Apenas evocado, imitado pela arte, desaparece; mas percebemos que a teoria da representação está
desligada de sua própria pragmática. Observamos padrões representativos
que vão legitimar o efeito produzido sobre o destinatário da
representação. O monstro na arte é apreciado; não apenas pela estética
inverossímil, mas por confrontar a questão do prazer estético e a
recepção pelo leitor. Sua figura constitui um momento-limite na Teoria
da Arte no século XVIII.
Para os filósofos da Era da Razão, cada homem é um ser
duplo e a natureza age no interior. A monstruosidade é atribuída ao
individuo. As Luzes, acentua Romano (2003, p. 44), ignoram e com batem os monstros, sobretudo os indivíduos fora da norma. O monstro não é odiado, nem é indiferente; é um prodígio que admiramos ou
rejeitamos. Trata-se de uma desproporção do prazer. A figura do monstro atravessa as coordenadas da estética: a produção, a representação e a recepção da obra de arte. Por mais marginal que seja, sua apresentação tenta mostrar que se há neste mundo algo de irredutível e maligno, é preciso compreender estas deformidades como partes do drama do ser humano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Rio de Janeiro: UFRJ, 1999.
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ROMANO, Roberto. Moral e ciência: a monstruosidade no século
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Cadernos do CNLF , Vol. XIII, Nº 04 - Anais do XIII CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2009, p. 275
Cadernos do CNLF , Vol. XIII, Nº 04
Anais do XIII CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2009.
Estamos assistindo a um renovado interesse pelas imagens e textos disformes, grotescos e monstruosos por todos os lados – nocinema, nos desenhos animados, nas revistas em quadrinho, nos jogos da internet. São representações que invadem o planeta, tornando o que era amedrontador, em algo simplesmente familiar, cotidiano, não apenas porque a violência e o mal se banalizaram, mas porque estas narrativas contêm elementos que fascinam o homem de hoje, parecendo demonstrar serem ainda portadoras de mitos vivos com significado atemporal. Nas palavras de José Gil,
O homem ocidental contemporâneo já não sabe distinguir com nitidez
o contorno de sua identidade no meio dos diferentes pontos de referência.
(...) Daí o intenso fascínio atual pela monstruosidade. Os monstros
são-lhe absolutamente necessários para continuar a crer-se homem
(1994, p. 12).
Os monstros são como heróis porque representam o que a sociedade, em nome da normalidade, inconscientemente reprime. Contudo, ao elucidar o que considera serem os aspectos libertadores e elevados dos monstros, a sociedade perde de vista a natureza essencialmente repulsiva deles. As obras de horror não podem ser interpretadas nem como completamente repelentes nem como completamente
atraentes. Sua leitura torna-se bem mais produtiva quando enriquecida por uma dimensão histórica, na qual o monstruoso se torna significativo não apenas como fantasia exótica, mas como história social.
Nesse contexto, a pergunta relevante diz respeito não fundamentalmente à forma e às variações formais da monstruosidade, mas principalmente às funções de tal forma em certos momentos históricos
e às variações de tais funções no devir temporal. De certa maneira, poder-se-ia dizer que nos identificamos com os monstros por causa do poder que eles possuem - talvez por satisfazerem anseios.
O monstro é, de certo modo, a forma espontânea, a forma brutal,
mas, por conseguinte, a forma natural da contranatureza. É o modelo
ampliado, a forma, desenvolvida pelos próprios jogos da natureza, de todas
as pequenas irregularidades possíveis. E, nesse sentido, podemos dizer
que o monstro é o grande modelo de todas as pequenas discrepâncias.
É o princípio de inteligibilidade de todas as formas - que circulam na
forma de moeda miúda - da anomalia. Descobrir qual o fundo de monstruosidade
que existe por trás das pequenas anomalias, dos pequenos
desvios, das pequenas irregularidades é o problema que vamos encontrar
ao longo de todo o século XIX. (Foucault, 2002, p. 71)
O monstro é a figura essencial, em torno da qual as instâncias de poder e os campos de saber se inquietam e se reorganizam. No direito romano, que evidentemente serve de pano de fundo para toda essa problemática do monstro, distinguiam-se com cuidado, se não com clareza, duas categorias: a categoria da deformidade, da enfermidade, do defeito (o disforme, o enfermo, o defeituoso, é o que chamavam de portentum ou ostentum), e o monstro, o monstro propriamente dito.
Cada cultura, ao lado de uma concepção adequada do Belo, sempre colocou a própria ideia do Feio. A problemática do Feio se faz complexa, sobretudo a partir da era histórica, com o advento da sensibilidade cristã e da arte que a exprime. A dor, o sofrimento, a morte, as deformações físicas são ressaltadas na articulação com as figuras grotescas, disformes e monstruosas. Amados e temidos, mantidos sob vigilância, os monstros, entendidos como violações das categorias culturais vigentes, penetram cada vez mais, com todo o fascínio do horrendo, na literatura e na arte, manifestando distorções realizadas com base na linguagem metafórica conhecida. Neste trabalho, procuro analisar as representações, na arte medieval e moderna, da estética e da política do grotesco e do demoníaco que, ao engendrar seus monstros, violam as categorias culturais vigentes e ilustram os medos e as expectativas do mapa cognitivo de uma dada sociedade.
O imaginário articula todas as ações do ser humano. Fenômeno coletivo, social e histórico, o imaginário de uma época precisa recuperar suas produções características vigentes entre o belo e o sinistro, o real e o estranho, a identidade e a diferença. A maneira de percebermos as formas que consideramos monstruosas questiona as concepções sobre a vida, a linguagem, o cosmos, a imaginação criadora, o princípio da negatividade. Trata-se de um saber informe e gigantesco, feito de pedaços que misturam o irracional e o delirante, uma mistura de ideologias. É um passeio formidável e representa a importância do tema da teratologia e de como a sua função na sociedade varia de acordo com os tempos.
Sendo um dado cultural, a monstruosidade precisa de que a cultura propicie as convenções e assertivas da norma determinante de suas forças particulares. Ao estabelecer as condições de ordem e coerência, ela especifica quais as categorias que lógica ou genericamente são incompatíveis umas com as outras. Apesar de uma aceitação cada vez mais acentuada das categorias da monstruosidade, do disforme, do grotesco, do estigma em nossa sociedade, estas se tornam menos atuantes porque aceitamos e toleramos a desordem como passível de existir no mundo real. Em tempos mais "inocentes", era possível delinear o belo e o grotesco, o normal e o anormal; mas, atualmente, com tantos produtos híbridos, a figura imaginária do
monstro perde um pouco a sua eficácia.
Naturalmente, as figuras monstruosas e grotescas existem desde que o homem procurou expressar o seu imaginário na arte. O Livro da Revelação, a Odisseia, Beowulf, A Divina Comédia, são exemplos de textos contendo cenas de violência e imagens da diferença.
Monstros e demônios são sempre representados na arte, e a Idade Média é uma época que vê vários tipos grotescos reaparecerem para ilustrar os medos e expectativas causadas pelas mudanças exteriores ao homem. As viagens e peregrinações são ilustradas por diversos tipos estranhos.
Na mitologia clássica greco-romana, o monstro é apresentado
como uma criatura composta de várias partes diferenciadas de seres
vivos, combinando diferentes tipos de criaturas, como no caso dos
centauros e dos sátiros; algumas vezes, é o excesso a marca da diferença,
como a hidra, as górgonas. A hidra é a serpente monstruosa,
suas sete ou nove cabeças renascem à medida que são decepadas, e
as górgonas, três irmãs, três monstros, com a cabeça aureolada por
serpentes enfurecidas, tem presas de javali saindo dos lábios, mãos
de bronze e asas de ouro. Estes padrões explicitam o grau político
existente na cadeia semântica da palavra ‘monstruosidade’. Como
vemos nesta tela de Rubens, os cabelos da figura mitológica são frequentemente
representados nas obras de arte sob a forma de serpentes.
A visão da cabeça da Medusa torna o espectador rígido de terror,
transforma-o em pedra, segundo a lenda.
A imagem da monstruosidade é propriamente "algo mais que
a verdade, real ao extremo, e não uma coisa arbitrária, falsa, absurda
e contrária à realidade", diz-nos Thomas Mann (Apud Harpham, p.
XIX), embora o monstro tenha sido considerado, na Antiguidade, o
próprio oposto do real.
E como uma imaginação sardônica que extrapola os limites na criação
de monstros infindáveis, onde as alucinações se tornam palpáveis, os
temores medievais se espalham vertiginosa e opressivamente, e mostram
a danação de toda a vida humana, de toda a natureza, em sonhos satânicos
infindáveis (Ibiden).
Destes fantasmas terríveis ecoam os demônios monstruosos
que enfeitam as catedrais góticas. O monstro existe e confirma a ordem
divina da criação. As Gárgulas eram os guardiões das catedrais
e, acreditava-se que ganhavam vida a noite.
Jurgen Baltrusaitis (1999) comenta terem sido publicadas nos
últimos vinte anos do século XVI sete edições contendo gravuras
com seres monstruosos: homens com duas cabeças, seis braços, sereias
com duas caudas, seres híbridos de diversos tipos. O primeiro
tratado de Zoologia se apresenta como uma teratologia e uma lenda.
Paralelo a estas imagens está o universo infernal de todos os castigos
e aflições, tudo detalhado: os amaldiçoados do inferno, os supliciados
por demônios, dragões e serpentes em imagens repulsivas e aCadernos
medrontadoras. O inferno é tema obsessivo na Idade Média e nos séculos
sucessivos. O fiel é aterrorizado por uma descrição dos tormentos
infernais; imagem obsessiva, opressiva, o inferno está permanentemente
presente em todos os espíritos. Talvez fosse o germe
mais virulento do medo que atormentava as pessoas daquela época.
Gárgulas de Notre Dame. (In: ECO, p. 46)
Horácio inicia sua Arte poética tratando deste problema:
Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a uma cabeça humana
um pescoço de cavalo, ajuntar membros de toda procedência e cobrilos
de penas variegadas, de sorte que a figura, de mulher formosa em cima,
acabasse num hediondo peixe preto; centrados no quadro, meus amigos,
vocês conteriam o riso? Creiam-me, Pisões, bem parecido com
um quadro assim seria um livro onde se fantasiassem formas sem consistência,
quais sonho de enfermo, de maneira que o pé e a cabeça não se
combinassem num ser uno. (Apud Brandão, p. 55)
Conhecidos como ‘drôleries’, tolices, os motivos decorativos
que ilustram as margens de certos manuscritos medievais revelam
uma composição fantasiosa e grotesca destas criaturas híbridas comentadas
por Horácio, com seres mistos, uma mistura de animais os
mais diversos, entre homem e animal, ou entre homem e planta, e até
mesmo de objetos inorgânicos, como podemos ver na pintura abaixo:
Luca de Leida – Triptico do Juízo final. 1527 (In: ECO, p. 89)
Les Heures de Croy – Séc. XVI. (In: ECO, p. 47)
Esta ênfase na simbologia do monstruoso não significa que a
cultura medieval não acredite na realidade do monstro, até porque a
própria natureza oferece evidências. Santo Agostinho não tem dúviCadernos
do CNLF , Vol. XIII, Nº 04
Anais do XIII CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2009, p. 266
das nem da existência de pigmeus e nem de deformações como as
que ocorrem em seres humanos "nascidos com mais de cinco dedos",
ou com "duas cabeças, dois peitos e quatro braços, mas com apenas
um ventre e dois pés". E apressa-se a ensinar aos cristãos que tais deformidades
tem o seu lugar na ordem criada por Deus: "não se deve
considerar incoerente que, da mesma forma que existem certas
monstruosidades nas várias raças humanas, existam também no conjunto
de toda a humanidade certos povos monstruosos" (Apud Eco,
2007, p. 102). O monstro medieval participa tanto do mundo material
como do espiritual. Constitui, por assim dizer, a fronteira entre as
duas dimensões, e é, simultaneamente, uma realidade e um discurso
simbólico de conhecimento, estabelecendo sempre entre ambos uma
possibilidade de contato. E Agostinho continua:
Pergunta-se além disso, se é crível que dos filhos de Noé, ou, melhor,
de Adão, de quem esses também precedem, se hajam propagado
certas raças de homens monstruosos de que a história dos povos dá fé.
Assegura-se, com efeito, que alguns têm um olho no meio da testa, que
outros têm os pés virados para trás, que outros possuem ambos os sexos,
a mamila direita de homem e a esquerda de mulher, e que, servindo-se
carnalmente deles, alternativamente, geram e dão à luz. Também contam
que alguns não têm boca e vivem exclusivamente do ar, respirado pelo
nariz. Afirmam que outros têm um côvado de altura e por isso os gregos
os chamam de pigmeus e que em algumas regiões, as mulheres concebem
aos cinco anos e não vivem mais de oito. Contam de igual modo,
existirem homens de velocidade espantosa e que, no verão, deitado de
costas, se defendem do sol com a sombra dos próprios pé. (...) Deus, criador
de todas as coisas, conhece onde, quando e o que é ou foi oportuno
criar e, ademais, conhece a beleza do universo e a semelhança ou diversidade
das partes que a compõem. (...) Assim, para concluir essa questão
com circunspecção e prudência, direi que não passam de pura novela as
coisas escritas sobre algumas nações, que, se se trata de realidade, não
são homens, ou que, se homens, descendem de Adão. (Apud, Gil, 1994,
p. 28).
Não apenas os monstros concorrem para dotar de variedade à
harmoniosa beleza do universo, como também ressaltam a tese do filósofo
segundo a qual a aparição de um homem monstruoso não deve
ser considerada um erro da natureza. O resultado da discussão agostiniana
é que as raças monstruosas vão poder ser tratadas como
mirabilia, essas curiosidades maravilhosas da natureza, constantemente
inventariadas pelos autores latinos. Gil ainda acrescenta que
os monstros são criações estranhas da Natureza e de Deus e Agostinho
abre a porta à admiração perante as maravilhas incompreensíveis
da Criação. (1994, p. 33). A Natureza será dividida em dois espaços
– o da ordem, sagrada ou profana, e o do maravilhoso, do desconhecido,
do inesperado. Esta classificação articula a desordem, o desafio
e a ameaça. A literatura medieval, as canções de gesta, os relatos de
peregrinações estão repletos de monstros, de demônios, de fadas, de
criaturas provenientes do folclore popular. Na representação abaixo,
vemos articulado o mundo cheio de fronteiras, com seres deformados,
exorbitados em relação à experiência comum.
Hieronymus Bosch é um dos pintores mais conhecidos desta
linha insólita e grotesca. Membro de uma Confraternidade de Nossa
Senhora (Eco, 2006, p. 102-105), Bosch articula, em suas representações,
uma série de alegorias moralizantes, férteis representações da
pintura estranha. O “Jardim das Delícias” é um quadro que ilustra esta
arte bizarra: dividido em três partes, introduz a figura de Eva no
Jardim do Paraíso, seguido por uma ilustração do título; conclui com
uma visão do inferno. Nesta pintura, não temos apenas visões sulfurosas
do além, mas também cenas sensuais e idílicas, que, no entanto,
são terrivelmente inquietantes, refletindo as imagens de vícios da
sociedade e demonstrando que o mundo dos prazeres terrenos pode
nos levar ao inferno.
No painel da esquerda, chamado Paraíso terrestre, o artista
retrata a criação de Adão e Eva, tendo como cenário uma paisagem
exótica e nada parecida com a imagem do Paraíso descrito na Bíblia.
Entre os animais, há alguns – como o unicórnio – em cuja existência
se acreditava, mas que não existia. O único fruto proibido estava na
árvore do conhecimento, à direita. Os animais já se alimentam uns
dos outros: o gato como um rato; no primeiro plano, pássaros devoram
sapos e rãs. O homem deveria elevar-se acima deste comportamento
animal.
No painel central, O Jardim das Delícias, temos a representação
da loucura, dos prazeres, em especial, a luxúria; aqui aparece o
ato sexual de onde se descobrem todos os prazeres carnais, prova de
que o homem perdera a graça. Enormes morangos representam os
prazeres da carne. O ‘pecado original’ da humanidade foi comer o
fruto proibido. Na linguagem medieval, colher frutos significava fazer
sexo. Estranhas personagens, frutos e aves, peixes e outros animais,
parecem realizar um movimento delirante. Adão, a única pessoa
vestida no quadro, está sentado com Eva, na boca de uma caverna,
no canto inferior direito. Segundo escritos apócrifos, os dois se
refugiaram numa caverna depois de expulsos do Jardim do éden.
No painel da direita, O Inferno musical, vemos representada a
condenação ao inferno; nela o pintor descreve um palco apoteótico e
cruel, no qual o ser humano é condenado pelo seu pecado. No alto do
painel há uma imagem típica do inferno, com fogueiras ardentes
cuspindo enxofre. Abaixo, vemos uma foice que parece um tanque
em formato fálico, feito de duas orelhas e uma lâmina.
As visões do pintor dos castigos infernais são tão terríveis quanto fantásticas. Um
soldado nu é atravessado por uma lança; um outro soldado armado é
comido vivo por dragões. Um bando de demônios ataca um grupo de
pecadores com facas, lanças e espadas. No canto inferior direito,
uma criatura semelhante a um pássaro devora vítimas humanas, e
depois as defeca num poço de excremento e vômito.
No alto da pintura, estruturas bizarras, de vegetais também
mecânicos, repetem movimentos circulares e crescem suavemente
em direção ao céu, cuspindo pássaros e figuras ainda não identificáveis.
À esquerda está o painel mais grotesco de todos: Deus apresenta
Eva a Adão, enquanto, por trás, animais deformados dançam loucamente
e dilaceram com ferocidade os animais capturados. Tudo
muito estranho; encontramos o estilo e o conteúdo presentes em murais
antigos revividos pela imaginação renascentista. Estas linhas, intrigantemente
esquematizadas, cheias de uma mistura incongruente e
fantástica que desafiam as leis do equilíbrio e da Física, ameaçam a
noção da ordem, fundindo categorias que introduzem um novo tipo
do demoníaco no mundo.
Em outro quadro, As tentações de Santo Antão, Bosch materializa,
em forma apocalíptica, as visões do fim do mundo; desenhos e
pinturas retratam as profecias em que o homem é fustigado por demônios
irados e vingativos; o clima sombrio traduz os tormentos da
época, as crenças de uma formação religiosa rígida, nos moldes da
igreja medieval vigente na Holanda, que brevemente seria abalada
pelo surgimento da Reforma. Aqui o mundo é grotesco e sente-se ao
seu redor o ar putrefato e corrupto.
O cenário é fantástico, mágico, vislumbra o macabro, traz incêndios e monstros imaginários. Há um
demônio com crânio de cavalo a tocar alaúde; um peixe metade gôndola, engole um homem; uma mulher com calda de lagarto cavalga uma ratazana. Numa época em que o Renascimento traduz corpos
perfeitos e nos contempla com imagens do belo, as imagens das pinceladas de Bosch dão passagem para o bizarro. O homem espera o Juízo Final.
Na época da Reforma, Lutero também relaciona os seres grotescos e a deformidade como uma maneira de Deus combater a corrupção das pessoas e das nações e recompensar os justos. Umberto Eco (2006) assinala que:
Em seus escritos, Lutero irá identificar muitas vezes o pontífice romano
tanto com o diabo quanto com o Anticristo. Lutero é obcecado pe
lo diabo e a lenda reza que, em uma de suas aparições, ele o expulsou jogando-
lhe um tinteiro. (...) Já no filósofo e na tradição protestante ganha
espaço a concepção de que o diabo identifica-se com os vícios dos quais
se torna símbolo. (p.101)
Os demônios atacam os humanos para embaraçar o reino de
Deus. Ele trabalha com a natureza, iludindo a mente, sugestionando
e formando ilusões observáveis pelos sentidos. Com uma forma
monstruosa, com chifres em diversas partes do corpo, reflete a monstruosidade
moral interna de Lúcifer.
Na literatura do Renascimento vários autores utilizam imagens
do monstro para ilustrar temas como usurpação, lutas pelo poder,
recursos utilizados por William Shakespeare, que em várias de
suas peças mantém o sentido para a imagem do monstro, com o objetivo
de educar e servir de parâmetro para convenções e comportamentos
tradicionais. Um dos mais citados e representados dramaturgos
de todos os tempos, tem um legado que até hoje influencia todos
os tipos de literatura e expressões artísticas modernas. Deixa uma
obra repleta de referências à imortalidade da alma, a espíritos benignos
ou malignos, a fadas, duendes, lugares encantados, bruxarias e
sortilégios. Nelas, os valores humanos são questionados e confrontados
com valores espirituais, isso de forma dramática e às vezes cômica.
Em A Tempestade (1611), encontramos Próspero, antigo Duque
de Milão, invocando forças sobrenaturais para trazer à pequena
ilha em que fora abandonado, o navio dos nobres que arruinaram sua
vida. Próspero consegue manobrar a força dos ventos e das águas para
provocar o naufrágio. Na ilha, é mestre de criaturas encantadas
como Ariel, espírito do Ar, e de outros espíritos da natureza. Com a
descoberta do Novo Mundo, são encontradas populações de costumes
selvagens. Shakespeare vai nos falar do horrendo e infeliz Caliban
nesta peça:
O que é isso? É homem ou peixe? Está vivo ou morto? É peixe! O
cheiro é de peixe, um fedor muito antigo e peixoso, de badejo nada novo.
Que peixe esquisito! Se eu estivesse na Inglaterra, agora, como já estive,
e mandasse pintar esse peixe, não passava de um otário de um forasteiro
que não me desse por ele uma moeda de prata; lá qualquer monstro faz
um homem de qualquer um. Não dão um vintém para aliviar um mendigo,
mas desperdiçam dez para ver um índio morto. Tem perna feito homem!
E as nadadeiras parecem braços! Palavra que está quente! Agora
vou libertar minha opinião, que não seguro mais: isto não é um peixe, é
um ilhéu que acaba de ser atingido por um raio. (Apud Eco, p. 127).
Calibã é um monstro disforme e selvagem, filho da terrível
bruxa Sicorax. O mago Próspero faz tudo para civilizar Calibã, mas
seus esforços são inúteis. O personagem monstruoso permanece
preso à sua animalidade e funciona como uma metáfora clara da face
egoica, irracional e instintiva, do homem.
Sonhos de Uma Noite de Verão (1598) traz o duende Puck
intermediando as relações de Hipólita, Rainha das Fadas, e de
Oberon, Rei dos Elfos. Puck também interfere nas relações humanas,
a mando de Oberon, manejando poções do amor e magias diversas.
O destino das pessoas é resolvido em contato com espíritos da
natureza. Nestas duas peças, Shakespeare põe monstros em cena. Os
filólogos consideram a origem diabólica de Puck – é simplesmente
um dos nomes do diabo, usado – como o do lobisomem e o dos
íncubos – para assustar mulheres e crianças. Puck pode multiplicarse
com facilidade e ainda diz ‘Posso circundar a Terra em quarenta
minutos’ (Ato II, 1).
Podemos também apontar semelhanças entre Puck e Ariel, que lançam um feitiço sobre os que passeiam, levando os a um mau caminho, e transformam-se em fogos-fátuos sobre os
pântanos. Esta sempre foi a ocupação favorita de todos os diabos
populares e as duas personagens entregam-se a ela com deleite. Ariel
metamorfoseia-se em quimera e em harpia; morde Calibã, pica-o,
belisca-o, faz-lhe cócegas até enlouquecê-lo.
Em Macbeth, (1596) Shakespeare já começa pondo as três
assustadoras Bruxas da Charneca a serviço de conspirações. Logo no
início, seu caldeirão ferve enquanto elas conjuram preces para
destruir os inimigos de seu senhor. As aparições, mais demoníacas
do que divinas, estão muito mais relacionadas à bruxaria do que à
religião. São seres amedrontadores, que funcionam como um canal
de comunicação entre as bruxas e o demônio.
O principal exemplo são as grotescas figuras invocadas pelas feiticeiras de Macbeth, na
Cena I, Ato IV: uma cabeça vestindo um capacete, que incita
Macbeth contra ser rival Macduff, barão de Fife; uma criança
ensanguentada, que profetiza que "ninguém nascido de mulher pode
molestar Macbeth"; uma criança coroada com um galho na mão, que
lança a famosa profecia: "Macbeth só será vencido quando o grande
bosque de Birmam, subindo a alta colina de Dunsinane, marchar
contra ele"; e, finalmente, a aparição de uma fila de oito reis, o
último tendo um espelho na mão. Atrás deles, mais uma vez, o já
conhecido fantasma de Banquo.
Para Shakespeare, a monstruosidade é menos um tema de
prodígios e deformidades fisiológicas, do que um modo de definir
um comportamento imoral ou aberrante, como atestam as palavras de
Antônio em The Twelfth Night:
In the nature there’s no blemish but the mind
None can be call’d deform’d but the Unkind. ( III, 4-376-7)
Ser um monstro é romper os elos naturais dos compromissos
familiares e sociais. Em Henrique IV (1598-1600), Shakespeare apresenta
o retrato de Falstaff:
E há um diabo que te assombra na forma de um velho gordo, tens
por companheiro um monte de carne. Por que conversas com esse feixe
de humores, esse barril de bestialidade, esse pacote de inchaços, esse
vasto odre de vinho, essa sacola recheada de tripas, esse boi de Manningtree
assado com pudim na barriga, esse vício idoso, essa iniquidade grisalha,
esse pai de rufiões, essa vaidade idosa. Em que é ele bom, senão
para provar e beber vinho? Em que correto e limpo, senão para cortar e
comer capões? Em que inventivo, senão em esperteza, em que esperto,
senão em vilanias? Em que vilão, senão em todas as coisas? Em que meritório,
senão em nada? (Apud Eco, Ato II, p. 4)
Michel Foucault relembra, em seus comentários sobre a visita
aos internos de hospitais e asilos de loucos, que a palavra "monstro"
designa alguma coisa ou alguém que irá ser mostrado aos outros
(confronte-se, a propósito, o latim monstrare com o francês montrer,
o inglês demonstrate e o português mostrar). Diz o filósofo:
O hábito da Idade Média de mostrar os insanos era, sem dúvida,
muito antigo. Em algumas das Narrturmer da Alemanha, haviam sido
abertas janelas gradeadas que permitiam observar, do lado de fora, os
loucos que lá estavam. Constituíam eles, assim, um espetáculo às portas
da cidade. Fato estranho é que esse costume não tenha desaparecido no
momento em que se fechavam as portas dos asilos, mas que, pelo contrário,
ele se tenha desenvolvido, assumindo, em Paris e em Londres, um
caráter quase institucional. Ainda em 1815, a acreditar-se num relatório
apresentado na Câmara dos Comuns, o hospital de Bethleem exibe os furiosos
por um penny, todos os domingos. (...) O desatino ocultava-se na
descrição das casas de internamento, mas a loucura continua a estar presente
no teatro do mundo. (p.146-7).
Num mundo onde a lógica divina estabelece suas prioridades,
alguém que se apresente de forma diferente, como um aleijão ou com
alguma deformidade, representa as consequências do vício, da perversidade,
da desrazão, como um aviso da cólera divina. A cultura do
Iluminismo mantém o monstro como foco de sentido negativo para
se entender o mundo natural. Roberto Romano cita o surgimento, pela
via científica, não apenas da teratologia, mas a da teratogênese,
com todas as suas produções imaginárias ou efetivas”. (2003, p. 39)
Wolfgang Kayser, um dos mais renomados críticos da arte,
explicita estas características:
(…) as figuras grotescas, distorcidas e deformadas, monstruosas,
não mantêm nenhuma relação com o real. Contudo, podemos perceber
que as normas empíricas de verossimilhança em sua tradição, não são
adequadas para explicitar a totalidade desta arte insólita. As figuras grotescas
não são imitações abortivas de uma visão racional do mundo, mas
delineiam a subversão da ideia de que a realidade é uma construção objetiva,
previsível e compreensível . (1999, p. 20)
A interdição de combinações ridículas e grotescas torna-se, na
Era da Razão, o texto básico preconizado pelas regras da estética neoclássica
do decoro e da imitação da Natureza. A transgressão destas
regras constitui a categoria do grotesco. Estas misturas estranhas e
bizarras passam a ser discutidas como um problema relevante para o
Romantismo. Um sentimento inquietante, que diz respeito à responsabilidade humana nesta concepção, desenvolve-se a partir dos usos subsequentes da imagem da monstruosidade, uma vez que, desde as
hidras de Horácio até os monstros criados pela fantasia poética, a
imagem monstruosa da organização política volta-se cada vez mais
para o indivíduo, não como produto final da natureza, mas como a
falibilidade do humano.
Da percepção deste hiato entre a natureza e a cultura, o temor
de que a própria sociedade humana possa produzir monstros emerge
já no final do século XVII. O Leviatã gigante de Hobbes é lembrado
como um mito que reflete a fragmentação e o desmembramento do
antigo corpo político encarnado na autoridade pessoal de governantes
feudais ou absolutistas. A figura do Leviatã assinala uma percepção
crescente, acentuada entre o regicídio e a revolução, de um destino
que não mais compactua com a natureza, mas é moldado pela
arte, pela política. Quando a revolução e o regicídio retornam à agenda
da história europeia, sobretudo com a Revolução Francesa e as
demais revoluções que ocorrem no século XIX, estes espectros grotescos,
monstruosos, são revividos.
A figura da monstruosidade resiste particularmente a qualquer
tentativa de uma síntese imediata, ainda mais quando se trata do século
XVIII clássico, singularmente radical quanto à figura monstruosa
na arte. O monstro permanece o ponto frágil das fundamentações
do sistema estético clássico, como ameaça para aqueles que querem
estabelecer este sistema, ou como o ponto de suas interrogações. O
monstro pode ser real, acidental, mas não é natural, e, no que diz
respeito à representação, não é consequência da verossimilhança, não
deve ter existência no mundo real.
Apenas evocado, imitado pela arte, desaparece; mas percebemos que a teoria da representação está
desligada de sua própria pragmática. Observamos padrões representativos
que vão legitimar o efeito produzido sobre o destinatário da
representação. O monstro na arte é apreciado; não apenas pela estética
inverossímil, mas por confrontar a questão do prazer estético e a
recepção pelo leitor. Sua figura constitui um momento-limite na Teoria
da Arte no século XVIII.
Para os filósofos da Era da Razão, cada homem é um ser
duplo e a natureza age no interior. A monstruosidade é atribuída ao
individuo. As Luzes, acentua Romano (2003, p. 44), ignoram e com batem os monstros, sobretudo os indivíduos fora da norma. O monstro não é odiado, nem é indiferente; é um prodígio que admiramos ou
rejeitamos. Trata-se de uma desproporção do prazer. A figura do monstro atravessa as coordenadas da estética: a produção, a representação e a recepção da obra de arte. Por mais marginal que seja, sua apresentação tenta mostrar que se há neste mundo algo de irredutível e maligno, é preciso compreender estas deformidades como partes do drama do ser humano.
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Cadernos do CNLF , Vol. XIII, Nº 04 - Anais do XIII CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2009, p. 275
TEXTO 02-A NATUREZA MONSTRUOSA EM VIDAS SECAS , DE GRACILIANO RAMOS
Luiz Eduardo da Silva Andrade
Universidade Federal de Sergipe
luizeduardo@teachers.org
RESUMO: Este trabalho objetiva analisar as representações da natureza monstruosa no romance Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos. Ao contrário do romantismo a natureza do modernismo de 30 perde toda a sua exuberância e é apresentada como fator que fragmenta ou mesmo destrói a nação e o “brasileiro”. A seca tem aspectos monstruosos porque cerceia a vida dos sertanejos do Nordeste e expõe um lado seco, doído e desumano do Brasil, tanto no aspecto paisagístico como principalmente no social, a expulsar e/ou matar de fome e sede quem vive nela.
PALAVRAS-CHAVE: Graciliano Ramos; Vidas secas; Nação; Natureza; Monstro
ABSTRACT: This study aims to examine the representations of the monstrous character in the novel Vidas secas (1938) of Graciliano Ramos. Contrary to the romanticism period, the nature of modernism of 30 loses all its exuberance and is presented as a factor that breaks or destroys the nation and the "brazilian." The drought has since approximately the monstrous aspects of life man the Northeast of Brazil side and shows a dry, inhuman hurt and Brazil, both in appearance and mainly in the social landscape, to expel and/or kill those who hunger and thirst to live it.
KEYWORDS: Graciliano Ramos; Vidas secas; Nation; Nature; Monster
A modernidade tem como principal característica a renovação do pensamento, no sentido de valorizar a razão e afastar as supostas trevas impregnadas na cultura desde a Idade Média. Renovar o pensamento significa reavaliar os valores morais, éticos, religiosos, a economia, a política e a história da humanidade, Marshall Berman (2005) atribui ao Fausto, de Goethe, a qualidade de obra fundamental na inauguração do novo tempo na literatura, embora reconheça que a modernidade tenha começado bem antes. A revolução social empreendida pela modernidade é acompanhada pelo nascimento e desenvolvimento do capitalismo, Berman diz que Fausto passa por metamorfoses, as quais vão desde o descobrimento da modernidade, o desapego ao passado, até a fase empreendedora em que ele já está tomado pelo espírito moderno.
Para chegar ao auge Fausto é impelido pela modernidade a fomentar idéias as quais refletem o avanço tecnológico oriundo da Revolução Industrial. A industrialização acelerou a renovação do pensamento a tal ponto que na modernidade “tudo que é sólido desmancha no ar”, diz Berman repetindo Marx. Da velocidade das linhas de produção saiu a inspiração para o nascimento das vanguardas européias, período artístico que teve como principal temática a reavaliação do que era arte aliada à tentativa de estar sempre na dianteira do pensamento. As correntes vanguardistas transgrediram os valores artísticos do século XIX e abriram o século XX com a pretensão de romper totalmente com a formalidade que prendia o homem moderno a um passado, fosse ele estético ou sentimental.
No mesmo período o Brasil vive a efervescência da República, seguida da tentativa de criar uma identidade nacional idealizada desde o século XIX com o romantismo. A natureza assume papel principal no projeto de nação brasileira, não é à toa que os símbolos nacionais, como a bandeira e o Hino Nacional, exaltam o verde das matas, as riquezas minerais e o céu azul (CHAUI, 2001). Maria Zilda Cury (2000) sintetiza muito bem como funcionava essa idéia de unicidade da nação brasileira:
O final do século XIX brasileiro, por exemplo, teve nas imagens de nação um momento privilegiado de sua configuração como discurso fundador, caracterizado principalmente pela invenção de um passado inequívoco, inquestionável, único para a nação. A multiplicidade ampla e contraditória da cultura é substituída, no discurso da fundação, por referências harmoniosas e homogeneizadas, tomadas como representantes exclusivas. (p. 216)
Nas narrativas do romantismo estão presentes o discurso formador e fundador: o primeiro refere-se ao processo histórico no qual a estética romântica participa e a fundação é responsável pela fomentação da identidade nacional, cultural, bem como da idéia de nação (CHAUI, 2001). Em poesia destaca-se Gonçalves Dias e em prosa José de Alencar (BOSI, 1975, p. 101). A literatura do período caracteriza-se por ser nacionalista, as imagens impressas são pautadas na exuberância da natureza brasileira, através dessa apologia os autores encontram subsídios para enaltecer o Brasil e solidificar uma nacionalidade.
A função da natureza, então, é construir uma ideologia, um princípio modelador da nação aliado à representação de personagens da classe média do século XIX, a fim de criar um vínculo de identificação positiva do brasileiro com o país recém-independente e em processo de implantação da república.
Chegado ao início do século XX, o modernismo pinta o cenário natural com cores e formas as quais valorizam a heterogeneidade tanto da paisagem quanto do povo brasileiro. Antonio Candido e José Castello dizem que “a denominação de Modernismo abrange, em nossa literatura, três fatos intimamente ligados: um movimento, uma estética e um período” (1979, p. 7).
Foi um movimento que teve seu ponto de partida “oficial” na Semana de Arte Moderna em 1922, tinha como principal motivação movimentar a estética vigente e aportuguesada da nossa literatura. Ainda que sua delineação não fosse clara, nem pontualmente unificada, os modernistas visavam sobretudo a ruptura com o passado para a partir do ideal vanguardista construir uma literatura brasileira. O primeiro momento modernista – de 1922 a 1930 – ficou conhecido por “modernismo de combate”, neste decênio os artistas tornaram-se conhecidos por terem uma postura radical, crítica e aguda. A produção modernista inaugurou uma proposta estética, um comportamento crítico, uma linguagem, novos significados para o conceito de cultura, por foi isso rotulada de antiarte e/ou contracultura, segundo Affonso Ávila (1975, p. 29).
No final dos anos 20, a partir da publicação de A bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, inicia-se outra vertente literária denominada modernismo de 30, caracterizada por ser uma literatura socialmente mais crítica que a anterior. A natureza muda totalmente e passa a ser declarada hostil ao brasileiro, o nordestino sofre com a seca do semi-árido e já não se conforma somente em observá-la porque agora ele é vítima da degradação gerada pelo espaço. A harmonia que unia o homem ao ambiente numa simbiose é rompida, no romance de 30 a seca só retira do sertanejo a condição de viver.
Em Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos, a seca do sertão aparece como um mal, portanto, pode-se falar em natureza monstruosa devido aos largos períodos de estiagem que destroem a vida. A partir desse aspecto, este trabalho tratará da natureza seca como um monstro questionador e problematizador do ideal de nação.
Caracterização da obra
Vidas secas foi escrito durante a segunda geração modernista. A crítica literária classifica como uma obra regionalista e de denúncia social, a obra trata e configura ficcionalmente o sertão do Nordeste brasileiro. Narra a vida de uma família de retirantes da seca, bem como descreve o ambiente hostil e a exploração dos donos de terra. O título do livro faz menção à secura presente em todos os espaços, desde a ambientação da caatinga com sua vegetação seca, amarela e cinzenta, ao pensamento das personagens, que se comunicam guturalmente como bichos. Ainda sobre o título da obra, Álvaro Lins (1977) comenta que ela representa
um estado de razão, de lucidez, de sobriedade. O critério que preside a sua obra [do autor] é um critério de inteligência; a sua potencia é cerebral e abstrata. Não sei, por isso, que misteriosa intuição para se definir levou o Sr. Graciliano Ramos a escolher o título Vidas Sêcas para um de seus romances. Sem dúvida, todos os seus personagens são de fato "vidas secas". Os seus personagens e este estilo em que se exprime o romancista. (p. 144)
Baseado ainda no título observa-se também que as relações sociais são limitadas, esbarram sempre na animalização do homem pela natureza, ironicamente a personagem mais humana na obra é a cachorra Baleia, ela adentra em todos os ambientes, intermedia a relação entre Fabiano e os dois filhos, mesmo quando morre permanece no pensamento do todos da família.
O fato de ser uma obra regionalista não quer dizer que Graciliano Ramos sobreponha o aspecto da denúncia social à analise psicológica, ambos são divididos: à medida em que ele caracteriza as relações externas das personagens, mapeia também os pensamentos delas, inclusive os de Baleia. O sertanejo de Vidas secas não é visto como pitoresco, sentimental ou jocoso, muito pelo contrário, as agruras do sofrimento causado pela seca o transformaram num ser à beira do “homem-bicho”, que não se lamenta, não fala, nem desiste de viver, porém esmorece como ser humano. A narrativa é feita em terceira pessoa, predominantemente com o discurso indireto livre a fim de penetrar no mundo introspectivo das personagens, já que esses não têm o domínio da linguagem culta necessária para estabelecer comunicação.
O romance é dividido em treze capítulos os quais se interligam, porém apresentam um caráter fragmentário, pois são postos como contos, episódios que acabam se interligando com uma certa autonomia. É uma obra singular onde os personagens não passam de figurantes em meio a uma condição de vida que se sobressai, na qual a história é secundária e o próprio arranjo dos capítulos do livro obedece a um critério aleatório.
Segundo Nelly Novais Coelho (1974, p. 66) a forma de construir a obra foi feita através de quadros e cada um deles é o estudo psicológico de seus personagens. Em cada capítulo procura-se analisar as “pessoas” através de seu comportamento, que está voltado para a natureza e para os animais, já que existe uma fusão entre eles. Através de seus personagens Graciliano vai oferecendo aquele mundo complexo posto em voga pelo modernismo, isto é, o mundo debruçado nas surpreendentes galerias do espírito humano. Por isso, além de uma literatura social, o autor procura desvendar os mistérios que envolvem os seres humanos.
O livro tem um ciclo porque é aberto com o capítulo “Mudança”, em que eles estão na estrada e termina com “Fuga”, quando novamente eles vão embora. Dentro desse projeto vários elementos mudam de lugar, inclusive os sentimentos das personagens, só o que não muda é a seca, tanto na abertura quanto na finalização ela é brava do mesmo jeito.
Em “Mudança” os retirantes Fabiano, o pai, Sinha Vitória, a mãe, os dois meninos, acompanhados pela cachorra Baleia e o papagaio de estimação atravessavam a caatinga. Desalentados pela seca, pelo sol forte, pela fome, pela sede, pelo cansaço de existirem seguem arrastando seus pertences por dentro dos leitos dos rios esturricados. Já que estamos tratando das representações da natureza na obra é interessante notar que a narrativa é aberta com a caracterização do local, para depois entrarem em cena as personagens:
Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. (RAMOS, 1977, p. 9)
Procuravam um lugar, na caminhada o menino mais novo acaba desmaiando de fraqueza. Fabiano nesse momento parece influenciado negativamente pelas circunstâncias impostas pela seca, pensa em abandonar o menino ali, o narrador ainda marca que estava com o “espírito atribulado”, mas não o abandona. Externamente era um sujeito magro, seco, cambaio e internamente tinha o coração duro, fechado, espinhoso, como se a seca fizesse parte de sua natureza e através do tempo ele fosse tomando a forma de um cacto.
As aves de rapina aparecem no céu, são urubus à espera de alguma morte. A natureza parece que encerra o grupo naquele lugar, porque o chão era seco tórrido, ao redor a caatinga ameaçava e no céu os urubus cercavam. Do segundo capítulo em diante as partes focam a vida de cada personagem interligando-as, forma-se uma rede de modo que descentraliza a atenção do leitor, já que não é dado privilégio. A linguagem é capaz de criar as situações para cada um, porém todos estão nivelados, afinal todos estão na mesma situação de abandono pelo Estado e privados de qualquer conforto, esse é o drama da narrativa. Coutinho (1978) afirma que
Fabiano é obrigado a aceitar e transigir com as diversas condições que o mundo lhe impõe. Não pode comprar a cama de lastro de couro, única aspiração de Sinha Vitória; não pode reagir à cobrança de impostos, manifestação imediata da ação de um governo do qual não participa e que lhe aparece como um fetiche exterior e distante; não pode se livrar da absurda prisão. (p.106)
O romance é estruturalmente fragmentado, Rubem Braga (2001) considerou a obra como um “romance desmontável”, inicialmente foi escrita como contos esparsos, somente mais tarde é que eles foram reunidos tornando-se um romance ou novela, a depender da classificação, entretanto esse aspecto não será alvo de nossa discussão aqui.O que une os capítulos é a paisagem que se torna o fio condutor a perpassar todo o enredo.As personagens são figurantes em meio à natureza que devora suas vidas, como Bosi (1975, p. 451) afirma a reificação do homem é tão intensa que se chega ao ponto de não haver diferença entre os objetos e as pessoas. Fazendo isso a narrativa rompe com uma tradição na literatura brasileira em que o homem sempre dominou ou apreciou a natureza.
São personagens rejeitadas pela natureza e pelas pessoas, não há a integração nacional, esse tipo de brasileiro não é aceito pelo ambiente físico nem pelo humano. Este é um dos pontos centrais da narrativa, o contato entre essas partes não é positivo. Sendo que natureza aparece no centro, dividindo tudo, porque tanto o fazendeiro, quanto os moradores da cidade sofrem a seca, ela fragmenta em todos os níveis as relações na obra, tanto dos retirantes entre si, quanto do contato deles com o mundo. Álvaro Lins (1977) diz que
o ambiente que os envolve tem qualquer coisa de deserto ou de casa fechada e fria. Nenhuma salvação, nenhum socorro virá do exterior. Os personagens estão entregues aos seus próprios destinos. E não contam sequer com a piedade do romancista. O Sr. Graciliano Ramos movimenta as suas figuras humanas com uma tamanha impassibilidade que logo indica o desencanto e a indiferença com que olha para a humanidade. Que me lembre, só a um dos seus personagens ele trata com verdadeira simpatia, e este não é gente, mas um cachorro, em Vidas Sêcas . (p. 146)
Alfredo Bosi (1975) comenta que “Graciliano via em cada personagem a face angulosa da opressão e da dor. Naquele, há conaturalidade entre o homem e o meio; neste, a matriz de cada obra é uma ruptura” (p. 451). As personagens são figurantes em meio a natureza que devora suas vidas, como Bosi afirma a reificação do homem é tão intensa que se chega ao ponto de não haver diferença entre os objetos e as pessoas. Fazendo isso a narrativa rompe com uma tradição na literatura brasileira em que o homem sempre dominou a natureza.
No episódio do Soldado Amarelo, ainda no segundo capítulo, a figura do governo só ajuda a desagregar. Primeiro começa com o fiscal da prefeitura que não deixa Fabiano vender a carne de porco sem pagar imposto, depois com o Militar que considerou o fato de Fabiano ter se retirado da mesa de cartas uma ofensa, prendeu Fabiano, humilhou-o na cadeia. Em cárcere, durante a noite inteira, sua mente não se acerta, fica confusa, uma mistura de revolta e desalento, contudo mostra-se conformado com a surra. É possível ver isso na passagem seguinte:
Então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, dá-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas, as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e agüentavam cipó de boi oferecia consolações: – "Tenha paciência. Apanhar do governo não e desfeita.” (RAMOS, 1977, p. 35)
Outro ponto a ser marcado é o capitulo “Inverno”, há uma preparação positiva para as chuvas, no entanto quando elas chegam a destruição não pára, havia o risco de enchente e precisariam fugir novamente e viver com os preás. Então, vê-se que o problema do sertanejo não é com a seca somente, mas com a natureza, fato que rompe com a harmonia romântica das representações naturais. Pelo contrário, a hostilidade da caatinga em Vidas secas só auxilia na fragmentação do ideal nacional.
Otto Maria Carpeaux (2000) marca a cisão feita por Graciliano entre a cidade e o interior, ainda que a caatinga hostilize os sertanejos na cidade eles sofrem ou sofreriam mais, porque é na cidade que estão todos os vícios e outros problemas sociais. Haja vista que Fabiano apanhou do Soldado Amarelo porque se desentenderam num jogo de baralho. No capítulo “Festa”, as personagens vão à cidade, participam da missa e Fabiano bebe em demasia passando por outros problemas. Carpeaux argumenta que para Graciliano “não é o sertão o culpado; Vidas Secas é o seu romance relativamente mais sereno, relativamente mais otimista. O culpado é – superficialmente visto numa primeira aproximação – a cidade”. (p. 238)
Chegando ao penúltimo capítulo, “O mundo coberto de penas”, a presença das aves de arribação representava a aproximação do novo período de estiagem.
Fabiano tentava matá-las atirando, porém em vão. Era a luta contra o destino, contra a natureza cruel. Depois Fabiano vai compreender o porquê de as aves trazerem a desgraça. O que deve ser destacado aí é que a narrativa é dissonante da tradição na nossa literatura, ironicamente por causa de uma ave, “um bicho tão pequeno”, como diz Fabiano, a natureza criadora agora hostiliza o homem. Isso mostra o quão frágil é a relação entre eles, pois ela em todas as instâncias devora a vida.
A natureza como um mal
Vidas secas é um romance em que a caracterização da natureza fará parte não só da paisagem como também adentrará no espírito das personagens, as quais são fisicamente secas e psicologicamente áridas também.
A seca, em seus vários níveis, agride tanto a vida quanto a concepção de natureza brasileira bela cunhada no século XIX, as plantas são amarelas, cinzentas, os galhos poderiam dar idéia de fragilidade por serem finos, contudo eram cheios de espinhos, o verde não passava de manchas na tela presentes aqui e acolá. Não havia água, os rios estavam torrados pelo sol, o leito rachado e onde havia água era na verdade lama, revelando a condição sub-humana, animalesca em que viviam os sertanejos.
Os animais da narrativa na maioria das vezes são aves de rapina – urubus e aves de arribação –, ou seja, animais caçadores que para sobreviverem precisam matar. A sobrevivência desses bichos depende da morte de outros, quando não trazem consigo a desgraça, basta ver quando os pássaros chegam ao sertão matando o gado, bebendo a água dos açudes e ameaçando atacar os retirantes em viagem. Fabiano percebe a destruição chegando pelo céu quando ele vê “de repente, um risco no céu, outros riscos, milhares de riscos juntos, nuvens, o medonho rumor de asas a anunciar destruição”. (RAMOS, 1977, p. 120)
Esses são alguns dos aspectos maléficos da seca, há outros como o sol tórrido, a fome, as mazelas sociais apresentadas através da figura do patrão, do Soldado Amarelo em relação a Fabiano. São monstros a se alimentarem da desgraça alheia, Julio Jeha (2007a) dirá que os “monstros corporificam tudo que é perigoso e horrível na experiência humana” (p. 7).
Os monstros ameaçam, sua potencialidade é destruidora, por isso causam medo, horror e demarcam os espaços fronteiriços do que é possível à experiência humana. A natureza em Vidas secas perde o tom romântico, a caatinga é uma ameaça à sobrevivência, o sertanejo bucólico de outrora cede espaço a um homem duro, grosso e calado, o qual da experiência com a seca só obteve a desgraça de ver a morte diariamente, além de ser expulso da sua terra. O sentimento nacionalista da literatura do século XIX é abandonado e aquilo que dava orgulho ao brasileiro – a natureza –, no romance de 30 hostiliza a vida dele.
Julio Jeha (2007b, p. 9) compreende o mal como uma privação. No caso da nossa obra a seca priva o homem de várias coisas, sendo que a maior de todas é a possibilidade de viver, a qual se reduz a uma intermitência, uma luta constante pela sobrevivência. Baseado em Paul Ricoeur, Jeha diz que para caracterizar o mal até as palavras faltam, como se o indizível se traduzisse somente pela experiência negativa, talvez por isso as personagens da narrativa são quase mudas pois falar não resolveria nada, só sabe como é o mal causado pela estiagem quem a vivencia. Como exemplo dessa ineficiência da linguagem há a passagem em que Sinha Vitória prefere não dar ouvidos ao menino mais velho e explicar a ele o que é inferno. Se ele não tem noção é porque não sente como ela que o inferno já é a vida deles na caatinga, sendo assim falar não resolveria:
Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a linguagem de Sinha Terta, pediu informações. Sinha Vitoria, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros. (RAMOS, 1977, p, 57)
O texto é metalingüístico na forma como Graciliano Ramos concebe suas personagens, o ambiente e a estrutura da obra. Além de a narrativa recortar um dado momento histórico, uma paisagem e um tipo de ser humano, a linguagem que caracteriza as personagens não se diferencia e é nivelada com a que cria o ambiente: ambos são secos, amarelos, duros, espinhosos, fechados e magros. Como já foi mencionado anteriormente, a ordenação dos capítulos da obra não é padronizada, bem como o pensamento das personagens, tudo é fragmentado da mesma forma como a percepção humana sobre o mundo e os fenômenos.
Ainda sobre a citação anterior, faltava a Sinha Vitória palavras para explicar ao menino o que era inferno, como se a situação vivida fosse tão má que dispensasse as palavras. São nesses pontos que a narrativa imprime uma linguagem criadora do ambiente – infernal – e ao mesmo tempo questiona o que é esse mal vivido pelos nordestinos, se o mal da seca não era um inferno. Lembrando que o inferno para o imaginário popular – principalmente desde a Idade Média – está associado a um lugar quente, cheio de demônios, onde as pessoas pagam pelos seus pecados.
A partir daí Vidas secas indaga se aquelas pessoas merecem sofrer daquela forma, do que são culpadas ou se é a condição natural, social, cultural que as impôs àquela vida. Esse ponto da narrativa marca a cisão entre o paraíso tropical que é o Brasil do romantismo e o modernismo com a sua realidade crua dos que penam há muito tempo no sertão.
A interpretação da natureza como algo ruim não é novidade do século XX, Em O mal no pensamento moderno, Susan Neiman (2003) situa o início da idéia de mal na modernidade no século XVIII, com o terremoto ocorrido em Lisboa, em 1755. Por causa dele morreram muitas pessoas, ao ponto de vários estudiosos europeus da época escreverem sobre os terremotos, inclusive um dos grandes iluministas: Immanuel Kant.
Na época e durante muito tempo Lisboa foi referência para se comparar, determinar algo ruim, fosse em matéria de catástrofe natural ou em situações corriqueiras, tragédia sobrepujada somente no século XX com o massacre de Auschwitz e mais recentemente com o atentado terrorista do 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos.
Quando se fala em mal logo surge a noção de moralidade, ligada principalmente à ação individual de alguém contra uma moral religiosa, no entanto o mal pode estar intrinsecamente ligado a uma situação desagradável diante de qualquer circunstância, seja ela física ou metafísica. A natureza negativa, a depender da referencialidade, situa-se, segundo Jeha (2007b), tanto no plano metafísico como físico para causar alguma destruição, ele diz:
a morte pode ocorrer por causa tanto da luta pela sobrevivência quanto por catástrofes naturais. A natureza, assim, parece operar num regime de mal metafísico, pois seus ciclos de vida e morte, criação e destruição continuam inexoravelmente. (p. 15)
Sua monstruosidade está no fato de ela ser capaz de habitar a fronteira tensionada entre o sim e o não da vida, entre a seca e a chuva, vale ainda ressaltar mais uma vez que nem no período das chuvas os sertanejos estão a salvo, eles continuam privados de comer, de moradia, são obrigados a fugir para onde vivem os preás. Para quem considera a natureza apenas como um mal físico, Jeha (2007b) diz que ela “afeta nossa integridade física ou mental” (p. 16) e não seria demasiado forçado ver a monstruosidade na natureza porque a seca revela o estado de “pobreza, opressão, e algumas condições de saúde” (p. 16) resultados da imperfeição na organização social. A natureza em Vidas secas consegue operar nos dois sentidos, basta ver a seguinte passagem em que o casal olha para o céu: “temendo que a nuvem se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrível da obra, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente”. (RAMOS, 1977, p. 14)
O monstro tem a capacidade de deslumbrar, por isso ele engana, causa espanto diante de sua força e tamanho. O gigantismo é uma das características do monstro, segundo Nazário (1998, p. 30), a figura do gigante está culturalmente associada à maldade, ainda mais que as personagens estavam olhando para o céu, um espaço teoricamente infinito à visão, mas que de tanto deslumbre endoidecia, mostrando a sua potência negativa. O azul agora é terrível, ao contrário do céu “risonho, límpido e profundo” do Hino Nacional, na obra ele significa a falta de chuva e aterroriza o casal porque sabem que terão de partir e voltar à incerteza mais profunda sobre o futuro. Voltando ao gigante, na letra do Hino diz que o Brasil é “gigante pela própria natureza”, a contrariar esta idéia em Vidas secas uma parte do país é devorada pela grandiosidade da natureza que fora outrora motivo de orgulho.
A monstruosidade da natureza
Etimologicamente o vocábulo “monstro” tem sua origem no latim “monstrum” e significa aquele que revela, desvenda algo. É impossível encerrá-los em conceitos, já que fazem parte do imaginário cultural, ou seja, estão livres de apreensões formais. Sua categorização é imprecisa, Miguel Mix (1993) dirá que ao monstro se apartam a estética e a ética, se fosse comparado a um homem, este homem seria um estrangeiro, ou seja, um indivíduo que está deslocado momentaneamente da realidade.
O monstro é um ser fronteiriço, vive no limite do mundo conhecido e do imaginário, característica a qual corrobora o fato de ele ser categoricamente inapreensível.
Por não ser esteticamente definido suas qualidades variam, sua constituição é um mosaico de vários elementos que são agregados historicamente. Luiz Nazário (1998) define o ser monstruoso por sua “anaturalidade”, de modo que nunca estará em conformidade com o homem, a sociedade ou o momento histórico. Na verdade o monstro tem por função afetar a idéia de humanidade, questionar os valores e limites do que é ser humano, ainda mais no mundo moderno em que “tudo que é sólido desmancha no ar” e os valores são postos à prova constantemente.
O monstro é um ser mutável, ele acompanha o tempo e o espaço, não é à toa que figuras monstruosas como o vampiro estão presentes desde o Egito Antigo, (LECOUTEUX, 2005), ou o acéfalo, as amazonas desde a Antiguidade grega (MIX, 1993). Esses seres metaforizam uma época e todos os valores pertinentes a ela, mediante este recorte o monstro inrompe trazendo consigo as indagações e perturbações sobre o espírito humano.
É nesse ínterim que a natureza em Vidas secas aparece. Como no século XIX a literatura fomentou o ideal nacional através da representação de uma paisagem verde exuberante, no modernismo de 30 ela vai adquirir outras cores e passar a questionar o que é ser brasileiro, o que é a nação brasileira. A caatinga se opõe à amazônia da mesma forma que bem e mal são contrários, na obra de José de Alencar é possível verificar a bondade da natureza, já com Graciliano Ramos a imagem do semi-árido é negativa porque apresenta o mosaico paisagístico e social do Brasil, o homem, os bichos e a vegetação da seca desconstroem a visão romântica da nossa concepção histórica.
Para essa segunda parte da análise tomamos como ponto de partida a concepção de monstro presente no ensaio de Jeffrey Jerome Cohen (2007), intitulado “A cultura dos monstros: sete teses”. As teses tentarão mapear como as representações do monstro se configuram na cultura, o que ele significa, qual o sentido imbricado nas suas aparições. Obviamente as teses não resumem o que é o monstro, como Cohen mesmo diz: “alguns fragmentos serão aqui recolhidos e temporariamente colados para formar uma rede frouxamente integrada” (2007, p. 26).
Na primeira tese ele postula que “o corpo do monstro é um corpo cultural” (p. 26), ou seja, ele nasce de uma determinada sociedade e corporifica certo momento da cultura. A seca sempre foi presente no sertão, porém na década de 1930 houve uma muito forte, a qual forçou o governo a tomar alguma posição (VILLA, 2007). Tardia como sempre, serviu de motivo para lançar o questionamento sobre a situação do sertanejo, conta Albuquerque Jr. (2000) que José Américo de Almeida, deputado federal e interventor no estado da Paraíba nos anos 30, escreveu várias cartas ao então presidente Getúlio Vargas pedindo providências para a seca.
A seca na obra de Graciliano Ramos é um reflexo histórico, mas não somente, pois “como uma letra na página, o monstro significa algo diferente dele: é sempre um deslocamento; ele habita, sempre, o intervalo entre o momento da convulsão que o criou e o momento no qual ele é recebido – para nascer outra vez” (COHEN, 2007, p. 27). A presença da caatinga é uma metáfora de como o Brasil é diversificado culturalmente e de como os lugares mais distantes como o sertão se fazem presentes na configuração nacional, apesar do abandono estatal.
A nova concepção do sertão acorda a sociedade e rompe o pensamento de homogeneidade nacional, na época do Estado Novo era quase inacreditável para o país como um todo que pessoas passassem fome e morressem de sede, como se não houvesse imaginação o bastante para pensar a calamidade vivida no sertão. Quando na segunda tese Cohen (2007) escreve que o “monstro sempre escapa” ele se refere à categorização, ainda que se tente capturá-lo o monstro é inapreensível, a ele não se aplicam as convenções, ele deforma o que é comum, seu corpo é singular, mas não é limitado.
O monstro sempre escapa porque ele é indestrutível (NAZÁRIO, 1998). Justifica-se então o fato de ele sempre retornar, pois o que aterroriza, segundo Carroll (1999, p. 45), não é o monstro em si, mas o pensamento do monstro. O leitor sabe que a narrativa é uma ficção, mas a sugestão de que uma desgraça por recair sobre ele é que amedronta, sendo assim, o mal encarnado na monstruosidade nunca tem fim. No nosso romance vemos a indestrutibilidade do monstro quando Fabiano tenta matar as aves de arribação sem sucesso: “Levantou a espingarda, puxou o gatilho sem pontaria. Cinco ou seis aves caíram no chão, o resto se espantou, os galhos queimados surgiram nus.
Mas pouco a pouco se foram cobrindo, aquilo não tinha fim”. (RAMOS, 1977, p. 117), e vendo a impossibilidade de livrar o sertão da seca conclui: “– Miseráveis. As bichas excomungadas eram a causa da seca. Se pudesse matá-las, a seca se extinguiria” (RAMOS, 1977, p. 120). A potência do monstro é justificada por sua indestrutibilidade
Não é por acaso que a seca no modernismo tem por função mostrar o quanto são porosas as fronteiras da nação, a produção cultural no Brasil do início do século XX levanta uma série de questões sobre a homogeneidade da nação propagada no século anterior. Como era um momento de efervescência sobre a questão nacional o monstro da seca surge para acirrar o debate, Cohen (2007) em sua terceira tese fala que “o monstro é o arauto da crise de categorias” (p. 30).
A seca anuncia e revela um Brasil entregue à mazela social, do povo explorado pelo fazendeiro, do governo que só atrapalha.
O meio físico influencia Fabiano de tal forma que sua identidade é questionada, ele já não é mais o sertanejo ingênuo e sofredor, aquele que Euclides da Cunha sintetizou na frase “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Fabiano não se presta a uma categorização definida, ele assume identidades de retirante, “bicho”, “homem”, “cabra” e um possível cangaceiro. Antonio Candido (1967), no livro Literatura e sociedade, tece uma crítica acerca da literatura regionalista do pré-modernismo, a dizer que é um “conto sertanejo artificial, pretensioso, criando um sentimento subalterno e fácil de condescendência em relação ao próprio país, encarando com olhos europeus nossas realidades mais típicas. O homem do campo é visto como pitoresco, sentimental, jocoso” (CANDIDO, 1967, p. 113). Vidas Secas recorta este sertanejo e a idéia de nação ao apresentar o avesso de uma natureza que é revelada na crueza da sua face de morte, a qual aborta a expectativa de futuro de Fabiano.
A caatinga representa um monstro na medida em que foi uma paisagem natural marginalizada na construção da imagem da nação, mesmo que tenha sido retratada no século XIX em O sertanejo, de José de Alencar, O cabeleira, de Franklin Távora ou em Os sertões, de Euclides da Cunha, já no século XX, ela sempre ficou em segundo plano sua função não passava de uma ilustração. Na sua quarta tese, Cohen (2007) diz que “o monstro mora nos portões da diferença” (p. 32), ele nasceu dentro de uma determinada cultura, mas constitui uma alteridade. A seca faz parte do Brasil, entretanto por motivos diversos foi esquecida reaparecendo, assim, como um outro dentro do mesmo. Em Vidas secas ela é tratada com realismo, participa ativamente da construção da narrativa influenciando as personagens, por isso que quando volta a cena na literatura brasileira é tão violenta.
Inclusive, voracidade e ferocidade são algumas das características do monstro descritas por Luiz Nazário (1998, p. 35). Essas propriedades estão representadas em nossa obra, sobretudo, pelas aves de rapina que matam o gado e ameaçam as pessoas:
O que indignava Fabiano era o costume que os miseráveis tinham de atirar bicadas aos olhos de criaturas que já não se podiam defender. Ergueu-se, assustado, como se os bichos tivessem descido do céu azul e andassem ali perto, num vôo baixo, fazendo curvas cada vez menores em torno do seu corpo, de Sinha Vitória e dos meninos. (RAMOS, 1977, p. 133)
A condição da natureza morar nos portões da diferença e ser uma alteridade não quer dizer que ela está ali para se mostrar somente, lembrando a primeira tese, quando a seca surge o seu corpo revela um constructo social, cultural, racial, econômico e sexual. Com relação ao social, podemos pontuar que a relação entre o Estado e a sociedade é questionada na obra, principalmente quando o Soldado Amarelo espanca Fabiano.
As plantas secas e espinhosas, os rios torrados, o sol escaldante e os bichos vorazes corroem a idéia de nação a partir do ponto em que desfigura o quadro pintado do Brasil, país que teve como motivação para a idéia de nação a natureza (CHAUI, 2001). Fazendo isso a seca se autodesconstrói – afinal, a caatinga também compõe a natureza brasileira – porque se ela está ali para questionar os valores da época ela não pode se fixar num único ponto, ela tem dupla referência de ser no mesmo instante o Mesmo e o Outro (COHEN, 2007), sendo assim, na medida em que critica a natureza nacional ela também está incluída na crítica. Vidas secas costura as duas paisagens – a floresta e a caatinga –, pois a seca não sobrepõe simplesmente e sim é agregada à paisagem nacional, explicando, assim, a justificativa para ela destruir, refazer e construir a nação.
A representação monstruosa não destrói simplesmente a imagem da natureza construída desde o romantismo, mas a idéia de que o Brasil é homogêneo e só há o “verde das matas”. Se a seca anulasse totalmente os outros ambientes naturais do país estaria ela somente substituindo-os, quando na verdade o monstro habita a linha tênue entre uma paisagem e outra, nunca deixando de problematizar e indagar.
O monstro surge para delimitar o espaço possível de ser cruzado, como se traçasse o limite entre a vida e a morte. A quinta tese postula que “o monstro policia as fronteiras do possível”, a seca proíbe a vida e demarca ao mesmo tempo os espaços culturais. O uso da seca no romance serve para mostrar que a natureza nem sempre permite tudo, ao contrário ela barra a passagem, é difícil para os retirantes saírem do sertão. Mesmo quando saem o narrador anuncia que sofrerão a partir dali outras agressões. Não tinham escolha, era maior do que eles a grandiosa natureza e sua força destruidora.
Foram embora, chegariam a outro lugar no qual se plantariam, mostrando que o ciclo da vida deles não pararia ali. Muito menos a de outros nordestinos que fariam o mesmo percurso: “Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitoria e os dois meninos”. (RAMOS, 1977, p. 134)
Como já foi dito anteriormente, o monstro é um ser fronteiriço, ele habita os limites do que é possível à experiência humana. Por isso que ele nasce nos locais mais longínquos e marginais da imaginação (CARROLL, 1999, p. 54), até os anos 30 o semi-árido nordestino foi uma paisagem pouco lembrada, salvo algumas obras já mencionadas, no entanto sabia-se que era um lugar distante, quente e seco, afinal era um dos “sertões do Brasil”.
Para que exista o monstro é preciso que ele seja ameaçador, Carroll desenvolve a idéia a dizer que o monstro deve causar repulsa e medo, no caso da caatinga a seca manchava o cenário brasileiro romântico do século XIX e sugeria uma ameaça ao pensamento de nação. Apesar de não estar diretamente expresso em Vidas secas é necessário lembrar que desse ambiente seco nasceram movimentos como o messianismo de Antônio Conselheiro, em Canudos, o coronelismo e o cangaço, não dizemos aqui que a natureza condicionou totalmente o aparecimento deles, no entanto é sabido que culturalmente sempre é feita a associação entre o Nordeste, a caatinga e os movimentos citados.
Cohen (2007) na sétima e última tese diz: “o monstro está situado no limiar... do tornar-se” (p. 54), complementa ainda dizendo que eles “são nossos filhos” (p. 54). Mas como? Para se chegar a uma crítica à nação, a literatura brasileira precisou amadurecer várias idéias, por isso que o monstro é tão conhecedor do meio, ele sempre esteve no centro, mas foi empurrado para as margens. A paisagem seca esteve presente em narrativas do século XIX, mas servia somente como pano de fundo para o desenrolar das ações das personagens, como já foi visto.
Graciliano Ramos dá materialidade a essa natureza monstruosa, através de uma linguagem enxuta e objetiva ele constrói um espaço com elementos ameaçadores da vida e da nação.
Além de ter uma influência psicológica sobre as personagens a natureza é materializada através dos vários elementos que a compõe. Nazário (1998) dirá que “os monstros são excessivamente concretos. Eles se apresentam peludos, musculosos, cheios de dentes, tentáculos, membros e garras” (p. 36).
A caatinga tem todos os objetos da natureza bela do romantismo, no entanto na paisagem nordestina estão modificados: no semi-árido tem rio, mas é seco, tem plantas, mas são espinhosas, com galhos finos, tem aves, mas são de rapina, tem um céu azul, mas que endoidece e tem pessoas, mas reificadas e animalizadas. Com essas qualidades a monstruosidade da seca expõe os limites do tornar-se algo que ela não é, mas mesmo assim ela mostra, e de tão conhecedora do espaço, ela ataca a nação naquilo que dá mais orgulho ao país: a natureza.
Considerações finais
A relação entre natureza, já presente no romantismo, intensifica-se no modernismo. Primeiro, porque a partir das imagens da natureza desenvolvidas na literatura é possível ver a idéia de nação se formando e deformando ao mesmo tempo. Segundo, porque a natureza como espaço explorado pelo trabalho aumenta e conseqüentemente a transforma. Isto é, a imagem da natureza representada pelo romantismo seria mais exuberante e mítica, grosso modo, similar à do modernismo dos anos 1920. Já a natureza do modernismo da década de 1930 sofre uma reorientação ideológica e se torna hostil, tão hostil quanto a exploração do homem pelo homem.
Dessa forma, a natureza consegue agregar uma potência destruidora e influenciar a tudo e a todos, ao fazer isso Graciliano representa invertidamente a relação histórica entre o homem e a natureza, provando assim que o regionalismo e o universalismo não são incompatíveis. Muito pelo contrário, os seres mais primitivos da narrativa são os humanos, tanto o explorador – na figura do patrão, do cobrador e do Soldado Amarelo – quanto os retirantes, os quais tiveram sua humanidade retirada por uma série de fatores sócio-ambientais.
O monstro tem suas bases na cultura, no caso da natureza ela toma um corpo fragmentado em várias instâncias, ou seja, a exuberância da natureza brasileira traz consigo uma ideologia que perpassa a simples reflexão e vai além. Não é à toa que em pesquisa relatada por Marilena Chaui (2001), o povo brasileiro ainda tem seu orgulho pautado nas representações que faz da natureza. Isso revela que quando Vidas secas surge trazendo consigo um monstro, um ser culturalmente construído, a obra questionará os aspectos sociais, morais, éticos, espaciais, políticos e sexuais da nossa sociedade.
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[1] Este trabalho foi construído mediante o projeto de pesquisa intitulado Representações da natureza na literatura
Universidade Federal de Sergipe
luizeduardo@teachers.org
RESUMO: Este trabalho objetiva analisar as representações da natureza monstruosa no romance Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos. Ao contrário do romantismo a natureza do modernismo de 30 perde toda a sua exuberância e é apresentada como fator que fragmenta ou mesmo destrói a nação e o “brasileiro”. A seca tem aspectos monstruosos porque cerceia a vida dos sertanejos do Nordeste e expõe um lado seco, doído e desumano do Brasil, tanto no aspecto paisagístico como principalmente no social, a expulsar e/ou matar de fome e sede quem vive nela.
PALAVRAS-CHAVE: Graciliano Ramos; Vidas secas; Nação; Natureza; Monstro
ABSTRACT: This study aims to examine the representations of the monstrous character in the novel Vidas secas (1938) of Graciliano Ramos. Contrary to the romanticism period, the nature of modernism of 30 loses all its exuberance and is presented as a factor that breaks or destroys the nation and the "brazilian." The drought has since approximately the monstrous aspects of life man the Northeast of Brazil side and shows a dry, inhuman hurt and Brazil, both in appearance and mainly in the social landscape, to expel and/or kill those who hunger and thirst to live it.
KEYWORDS: Graciliano Ramos; Vidas secas; Nation; Nature; Monster
A modernidade tem como principal característica a renovação do pensamento, no sentido de valorizar a razão e afastar as supostas trevas impregnadas na cultura desde a Idade Média. Renovar o pensamento significa reavaliar os valores morais, éticos, religiosos, a economia, a política e a história da humanidade, Marshall Berman (2005) atribui ao Fausto, de Goethe, a qualidade de obra fundamental na inauguração do novo tempo na literatura, embora reconheça que a modernidade tenha começado bem antes. A revolução social empreendida pela modernidade é acompanhada pelo nascimento e desenvolvimento do capitalismo, Berman diz que Fausto passa por metamorfoses, as quais vão desde o descobrimento da modernidade, o desapego ao passado, até a fase empreendedora em que ele já está tomado pelo espírito moderno.
Para chegar ao auge Fausto é impelido pela modernidade a fomentar idéias as quais refletem o avanço tecnológico oriundo da Revolução Industrial. A industrialização acelerou a renovação do pensamento a tal ponto que na modernidade “tudo que é sólido desmancha no ar”, diz Berman repetindo Marx. Da velocidade das linhas de produção saiu a inspiração para o nascimento das vanguardas européias, período artístico que teve como principal temática a reavaliação do que era arte aliada à tentativa de estar sempre na dianteira do pensamento. As correntes vanguardistas transgrediram os valores artísticos do século XIX e abriram o século XX com a pretensão de romper totalmente com a formalidade que prendia o homem moderno a um passado, fosse ele estético ou sentimental.
No mesmo período o Brasil vive a efervescência da República, seguida da tentativa de criar uma identidade nacional idealizada desde o século XIX com o romantismo. A natureza assume papel principal no projeto de nação brasileira, não é à toa que os símbolos nacionais, como a bandeira e o Hino Nacional, exaltam o verde das matas, as riquezas minerais e o céu azul (CHAUI, 2001). Maria Zilda Cury (2000) sintetiza muito bem como funcionava essa idéia de unicidade da nação brasileira:
O final do século XIX brasileiro, por exemplo, teve nas imagens de nação um momento privilegiado de sua configuração como discurso fundador, caracterizado principalmente pela invenção de um passado inequívoco, inquestionável, único para a nação. A multiplicidade ampla e contraditória da cultura é substituída, no discurso da fundação, por referências harmoniosas e homogeneizadas, tomadas como representantes exclusivas. (p. 216)
Nas narrativas do romantismo estão presentes o discurso formador e fundador: o primeiro refere-se ao processo histórico no qual a estética romântica participa e a fundação é responsável pela fomentação da identidade nacional, cultural, bem como da idéia de nação (CHAUI, 2001). Em poesia destaca-se Gonçalves Dias e em prosa José de Alencar (BOSI, 1975, p. 101). A literatura do período caracteriza-se por ser nacionalista, as imagens impressas são pautadas na exuberância da natureza brasileira, através dessa apologia os autores encontram subsídios para enaltecer o Brasil e solidificar uma nacionalidade.
A função da natureza, então, é construir uma ideologia, um princípio modelador da nação aliado à representação de personagens da classe média do século XIX, a fim de criar um vínculo de identificação positiva do brasileiro com o país recém-independente e em processo de implantação da república.
Chegado ao início do século XX, o modernismo pinta o cenário natural com cores e formas as quais valorizam a heterogeneidade tanto da paisagem quanto do povo brasileiro. Antonio Candido e José Castello dizem que “a denominação de Modernismo abrange, em nossa literatura, três fatos intimamente ligados: um movimento, uma estética e um período” (1979, p. 7).
Foi um movimento que teve seu ponto de partida “oficial” na Semana de Arte Moderna em 1922, tinha como principal motivação movimentar a estética vigente e aportuguesada da nossa literatura. Ainda que sua delineação não fosse clara, nem pontualmente unificada, os modernistas visavam sobretudo a ruptura com o passado para a partir do ideal vanguardista construir uma literatura brasileira. O primeiro momento modernista – de 1922 a 1930 – ficou conhecido por “modernismo de combate”, neste decênio os artistas tornaram-se conhecidos por terem uma postura radical, crítica e aguda. A produção modernista inaugurou uma proposta estética, um comportamento crítico, uma linguagem, novos significados para o conceito de cultura, por foi isso rotulada de antiarte e/ou contracultura, segundo Affonso Ávila (1975, p. 29).
No final dos anos 20, a partir da publicação de A bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, inicia-se outra vertente literária denominada modernismo de 30, caracterizada por ser uma literatura socialmente mais crítica que a anterior. A natureza muda totalmente e passa a ser declarada hostil ao brasileiro, o nordestino sofre com a seca do semi-árido e já não se conforma somente em observá-la porque agora ele é vítima da degradação gerada pelo espaço. A harmonia que unia o homem ao ambiente numa simbiose é rompida, no romance de 30 a seca só retira do sertanejo a condição de viver.
Em Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos, a seca do sertão aparece como um mal, portanto, pode-se falar em natureza monstruosa devido aos largos períodos de estiagem que destroem a vida. A partir desse aspecto, este trabalho tratará da natureza seca como um monstro questionador e problematizador do ideal de nação.
Caracterização da obra
Vidas secas foi escrito durante a segunda geração modernista. A crítica literária classifica como uma obra regionalista e de denúncia social, a obra trata e configura ficcionalmente o sertão do Nordeste brasileiro. Narra a vida de uma família de retirantes da seca, bem como descreve o ambiente hostil e a exploração dos donos de terra. O título do livro faz menção à secura presente em todos os espaços, desde a ambientação da caatinga com sua vegetação seca, amarela e cinzenta, ao pensamento das personagens, que se comunicam guturalmente como bichos. Ainda sobre o título da obra, Álvaro Lins (1977) comenta que ela representa
um estado de razão, de lucidez, de sobriedade. O critério que preside a sua obra [do autor] é um critério de inteligência; a sua potencia é cerebral e abstrata. Não sei, por isso, que misteriosa intuição para se definir levou o Sr. Graciliano Ramos a escolher o título Vidas Sêcas para um de seus romances. Sem dúvida, todos os seus personagens são de fato "vidas secas". Os seus personagens e este estilo em que se exprime o romancista. (p. 144)
Baseado ainda no título observa-se também que as relações sociais são limitadas, esbarram sempre na animalização do homem pela natureza, ironicamente a personagem mais humana na obra é a cachorra Baleia, ela adentra em todos os ambientes, intermedia a relação entre Fabiano e os dois filhos, mesmo quando morre permanece no pensamento do todos da família.
O fato de ser uma obra regionalista não quer dizer que Graciliano Ramos sobreponha o aspecto da denúncia social à analise psicológica, ambos são divididos: à medida em que ele caracteriza as relações externas das personagens, mapeia também os pensamentos delas, inclusive os de Baleia. O sertanejo de Vidas secas não é visto como pitoresco, sentimental ou jocoso, muito pelo contrário, as agruras do sofrimento causado pela seca o transformaram num ser à beira do “homem-bicho”, que não se lamenta, não fala, nem desiste de viver, porém esmorece como ser humano. A narrativa é feita em terceira pessoa, predominantemente com o discurso indireto livre a fim de penetrar no mundo introspectivo das personagens, já que esses não têm o domínio da linguagem culta necessária para estabelecer comunicação.
O romance é dividido em treze capítulos os quais se interligam, porém apresentam um caráter fragmentário, pois são postos como contos, episódios que acabam se interligando com uma certa autonomia. É uma obra singular onde os personagens não passam de figurantes em meio a uma condição de vida que se sobressai, na qual a história é secundária e o próprio arranjo dos capítulos do livro obedece a um critério aleatório.
Segundo Nelly Novais Coelho (1974, p. 66) a forma de construir a obra foi feita através de quadros e cada um deles é o estudo psicológico de seus personagens. Em cada capítulo procura-se analisar as “pessoas” através de seu comportamento, que está voltado para a natureza e para os animais, já que existe uma fusão entre eles. Através de seus personagens Graciliano vai oferecendo aquele mundo complexo posto em voga pelo modernismo, isto é, o mundo debruçado nas surpreendentes galerias do espírito humano. Por isso, além de uma literatura social, o autor procura desvendar os mistérios que envolvem os seres humanos.
O livro tem um ciclo porque é aberto com o capítulo “Mudança”, em que eles estão na estrada e termina com “Fuga”, quando novamente eles vão embora. Dentro desse projeto vários elementos mudam de lugar, inclusive os sentimentos das personagens, só o que não muda é a seca, tanto na abertura quanto na finalização ela é brava do mesmo jeito.
Em “Mudança” os retirantes Fabiano, o pai, Sinha Vitória, a mãe, os dois meninos, acompanhados pela cachorra Baleia e o papagaio de estimação atravessavam a caatinga. Desalentados pela seca, pelo sol forte, pela fome, pela sede, pelo cansaço de existirem seguem arrastando seus pertences por dentro dos leitos dos rios esturricados. Já que estamos tratando das representações da natureza na obra é interessante notar que a narrativa é aberta com a caracterização do local, para depois entrarem em cena as personagens:
Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. (RAMOS, 1977, p. 9)
Procuravam um lugar, na caminhada o menino mais novo acaba desmaiando de fraqueza. Fabiano nesse momento parece influenciado negativamente pelas circunstâncias impostas pela seca, pensa em abandonar o menino ali, o narrador ainda marca que estava com o “espírito atribulado”, mas não o abandona. Externamente era um sujeito magro, seco, cambaio e internamente tinha o coração duro, fechado, espinhoso, como se a seca fizesse parte de sua natureza e através do tempo ele fosse tomando a forma de um cacto.
As aves de rapina aparecem no céu, são urubus à espera de alguma morte. A natureza parece que encerra o grupo naquele lugar, porque o chão era seco tórrido, ao redor a caatinga ameaçava e no céu os urubus cercavam. Do segundo capítulo em diante as partes focam a vida de cada personagem interligando-as, forma-se uma rede de modo que descentraliza a atenção do leitor, já que não é dado privilégio. A linguagem é capaz de criar as situações para cada um, porém todos estão nivelados, afinal todos estão na mesma situação de abandono pelo Estado e privados de qualquer conforto, esse é o drama da narrativa. Coutinho (1978) afirma que
Fabiano é obrigado a aceitar e transigir com as diversas condições que o mundo lhe impõe. Não pode comprar a cama de lastro de couro, única aspiração de Sinha Vitória; não pode reagir à cobrança de impostos, manifestação imediata da ação de um governo do qual não participa e que lhe aparece como um fetiche exterior e distante; não pode se livrar da absurda prisão. (p.106)
O romance é estruturalmente fragmentado, Rubem Braga (2001) considerou a obra como um “romance desmontável”, inicialmente foi escrita como contos esparsos, somente mais tarde é que eles foram reunidos tornando-se um romance ou novela, a depender da classificação, entretanto esse aspecto não será alvo de nossa discussão aqui.O que une os capítulos é a paisagem que se torna o fio condutor a perpassar todo o enredo.As personagens são figurantes em meio à natureza que devora suas vidas, como Bosi (1975, p. 451) afirma a reificação do homem é tão intensa que se chega ao ponto de não haver diferença entre os objetos e as pessoas. Fazendo isso a narrativa rompe com uma tradição na literatura brasileira em que o homem sempre dominou ou apreciou a natureza.
São personagens rejeitadas pela natureza e pelas pessoas, não há a integração nacional, esse tipo de brasileiro não é aceito pelo ambiente físico nem pelo humano. Este é um dos pontos centrais da narrativa, o contato entre essas partes não é positivo. Sendo que natureza aparece no centro, dividindo tudo, porque tanto o fazendeiro, quanto os moradores da cidade sofrem a seca, ela fragmenta em todos os níveis as relações na obra, tanto dos retirantes entre si, quanto do contato deles com o mundo. Álvaro Lins (1977) diz que
o ambiente que os envolve tem qualquer coisa de deserto ou de casa fechada e fria. Nenhuma salvação, nenhum socorro virá do exterior. Os personagens estão entregues aos seus próprios destinos. E não contam sequer com a piedade do romancista. O Sr. Graciliano Ramos movimenta as suas figuras humanas com uma tamanha impassibilidade que logo indica o desencanto e a indiferença com que olha para a humanidade. Que me lembre, só a um dos seus personagens ele trata com verdadeira simpatia, e este não é gente, mas um cachorro, em Vidas Sêcas . (p. 146)
Alfredo Bosi (1975) comenta que “Graciliano via em cada personagem a face angulosa da opressão e da dor. Naquele, há conaturalidade entre o homem e o meio; neste, a matriz de cada obra é uma ruptura” (p. 451). As personagens são figurantes em meio a natureza que devora suas vidas, como Bosi afirma a reificação do homem é tão intensa que se chega ao ponto de não haver diferença entre os objetos e as pessoas. Fazendo isso a narrativa rompe com uma tradição na literatura brasileira em que o homem sempre dominou a natureza.
No episódio do Soldado Amarelo, ainda no segundo capítulo, a figura do governo só ajuda a desagregar. Primeiro começa com o fiscal da prefeitura que não deixa Fabiano vender a carne de porco sem pagar imposto, depois com o Militar que considerou o fato de Fabiano ter se retirado da mesa de cartas uma ofensa, prendeu Fabiano, humilhou-o na cadeia. Em cárcere, durante a noite inteira, sua mente não se acerta, fica confusa, uma mistura de revolta e desalento, contudo mostra-se conformado com a surra. É possível ver isso na passagem seguinte:
Então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, dá-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas, as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e agüentavam cipó de boi oferecia consolações: – "Tenha paciência. Apanhar do governo não e desfeita.” (RAMOS, 1977, p. 35)
Outro ponto a ser marcado é o capitulo “Inverno”, há uma preparação positiva para as chuvas, no entanto quando elas chegam a destruição não pára, havia o risco de enchente e precisariam fugir novamente e viver com os preás. Então, vê-se que o problema do sertanejo não é com a seca somente, mas com a natureza, fato que rompe com a harmonia romântica das representações naturais. Pelo contrário, a hostilidade da caatinga em Vidas secas só auxilia na fragmentação do ideal nacional.
Otto Maria Carpeaux (2000) marca a cisão feita por Graciliano entre a cidade e o interior, ainda que a caatinga hostilize os sertanejos na cidade eles sofrem ou sofreriam mais, porque é na cidade que estão todos os vícios e outros problemas sociais. Haja vista que Fabiano apanhou do Soldado Amarelo porque se desentenderam num jogo de baralho. No capítulo “Festa”, as personagens vão à cidade, participam da missa e Fabiano bebe em demasia passando por outros problemas. Carpeaux argumenta que para Graciliano “não é o sertão o culpado; Vidas Secas é o seu romance relativamente mais sereno, relativamente mais otimista. O culpado é – superficialmente visto numa primeira aproximação – a cidade”. (p. 238)
Chegando ao penúltimo capítulo, “O mundo coberto de penas”, a presença das aves de arribação representava a aproximação do novo período de estiagem.
Fabiano tentava matá-las atirando, porém em vão. Era a luta contra o destino, contra a natureza cruel. Depois Fabiano vai compreender o porquê de as aves trazerem a desgraça. O que deve ser destacado aí é que a narrativa é dissonante da tradição na nossa literatura, ironicamente por causa de uma ave, “um bicho tão pequeno”, como diz Fabiano, a natureza criadora agora hostiliza o homem. Isso mostra o quão frágil é a relação entre eles, pois ela em todas as instâncias devora a vida.
A natureza como um mal
Vidas secas é um romance em que a caracterização da natureza fará parte não só da paisagem como também adentrará no espírito das personagens, as quais são fisicamente secas e psicologicamente áridas também.
A seca, em seus vários níveis, agride tanto a vida quanto a concepção de natureza brasileira bela cunhada no século XIX, as plantas são amarelas, cinzentas, os galhos poderiam dar idéia de fragilidade por serem finos, contudo eram cheios de espinhos, o verde não passava de manchas na tela presentes aqui e acolá. Não havia água, os rios estavam torrados pelo sol, o leito rachado e onde havia água era na verdade lama, revelando a condição sub-humana, animalesca em que viviam os sertanejos.
Os animais da narrativa na maioria das vezes são aves de rapina – urubus e aves de arribação –, ou seja, animais caçadores que para sobreviverem precisam matar. A sobrevivência desses bichos depende da morte de outros, quando não trazem consigo a desgraça, basta ver quando os pássaros chegam ao sertão matando o gado, bebendo a água dos açudes e ameaçando atacar os retirantes em viagem. Fabiano percebe a destruição chegando pelo céu quando ele vê “de repente, um risco no céu, outros riscos, milhares de riscos juntos, nuvens, o medonho rumor de asas a anunciar destruição”. (RAMOS, 1977, p. 120)
Esses são alguns dos aspectos maléficos da seca, há outros como o sol tórrido, a fome, as mazelas sociais apresentadas através da figura do patrão, do Soldado Amarelo em relação a Fabiano. São monstros a se alimentarem da desgraça alheia, Julio Jeha (2007a) dirá que os “monstros corporificam tudo que é perigoso e horrível na experiência humana” (p. 7).
Os monstros ameaçam, sua potencialidade é destruidora, por isso causam medo, horror e demarcam os espaços fronteiriços do que é possível à experiência humana. A natureza em Vidas secas perde o tom romântico, a caatinga é uma ameaça à sobrevivência, o sertanejo bucólico de outrora cede espaço a um homem duro, grosso e calado, o qual da experiência com a seca só obteve a desgraça de ver a morte diariamente, além de ser expulso da sua terra. O sentimento nacionalista da literatura do século XIX é abandonado e aquilo que dava orgulho ao brasileiro – a natureza –, no romance de 30 hostiliza a vida dele.
Julio Jeha (2007b, p. 9) compreende o mal como uma privação. No caso da nossa obra a seca priva o homem de várias coisas, sendo que a maior de todas é a possibilidade de viver, a qual se reduz a uma intermitência, uma luta constante pela sobrevivência. Baseado em Paul Ricoeur, Jeha diz que para caracterizar o mal até as palavras faltam, como se o indizível se traduzisse somente pela experiência negativa, talvez por isso as personagens da narrativa são quase mudas pois falar não resolveria nada, só sabe como é o mal causado pela estiagem quem a vivencia. Como exemplo dessa ineficiência da linguagem há a passagem em que Sinha Vitória prefere não dar ouvidos ao menino mais velho e explicar a ele o que é inferno. Se ele não tem noção é porque não sente como ela que o inferno já é a vida deles na caatinga, sendo assim falar não resolveria:
Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a linguagem de Sinha Terta, pediu informações. Sinha Vitoria, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros. (RAMOS, 1977, p, 57)
O texto é metalingüístico na forma como Graciliano Ramos concebe suas personagens, o ambiente e a estrutura da obra. Além de a narrativa recortar um dado momento histórico, uma paisagem e um tipo de ser humano, a linguagem que caracteriza as personagens não se diferencia e é nivelada com a que cria o ambiente: ambos são secos, amarelos, duros, espinhosos, fechados e magros. Como já foi mencionado anteriormente, a ordenação dos capítulos da obra não é padronizada, bem como o pensamento das personagens, tudo é fragmentado da mesma forma como a percepção humana sobre o mundo e os fenômenos.
Ainda sobre a citação anterior, faltava a Sinha Vitória palavras para explicar ao menino o que era inferno, como se a situação vivida fosse tão má que dispensasse as palavras. São nesses pontos que a narrativa imprime uma linguagem criadora do ambiente – infernal – e ao mesmo tempo questiona o que é esse mal vivido pelos nordestinos, se o mal da seca não era um inferno. Lembrando que o inferno para o imaginário popular – principalmente desde a Idade Média – está associado a um lugar quente, cheio de demônios, onde as pessoas pagam pelos seus pecados.
A partir daí Vidas secas indaga se aquelas pessoas merecem sofrer daquela forma, do que são culpadas ou se é a condição natural, social, cultural que as impôs àquela vida. Esse ponto da narrativa marca a cisão entre o paraíso tropical que é o Brasil do romantismo e o modernismo com a sua realidade crua dos que penam há muito tempo no sertão.
A interpretação da natureza como algo ruim não é novidade do século XX, Em O mal no pensamento moderno, Susan Neiman (2003) situa o início da idéia de mal na modernidade no século XVIII, com o terremoto ocorrido em Lisboa, em 1755. Por causa dele morreram muitas pessoas, ao ponto de vários estudiosos europeus da época escreverem sobre os terremotos, inclusive um dos grandes iluministas: Immanuel Kant.
Na época e durante muito tempo Lisboa foi referência para se comparar, determinar algo ruim, fosse em matéria de catástrofe natural ou em situações corriqueiras, tragédia sobrepujada somente no século XX com o massacre de Auschwitz e mais recentemente com o atentado terrorista do 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos.
Quando se fala em mal logo surge a noção de moralidade, ligada principalmente à ação individual de alguém contra uma moral religiosa, no entanto o mal pode estar intrinsecamente ligado a uma situação desagradável diante de qualquer circunstância, seja ela física ou metafísica. A natureza negativa, a depender da referencialidade, situa-se, segundo Jeha (2007b), tanto no plano metafísico como físico para causar alguma destruição, ele diz:
a morte pode ocorrer por causa tanto da luta pela sobrevivência quanto por catástrofes naturais. A natureza, assim, parece operar num regime de mal metafísico, pois seus ciclos de vida e morte, criação e destruição continuam inexoravelmente. (p. 15)
Sua monstruosidade está no fato de ela ser capaz de habitar a fronteira tensionada entre o sim e o não da vida, entre a seca e a chuva, vale ainda ressaltar mais uma vez que nem no período das chuvas os sertanejos estão a salvo, eles continuam privados de comer, de moradia, são obrigados a fugir para onde vivem os preás. Para quem considera a natureza apenas como um mal físico, Jeha (2007b) diz que ela “afeta nossa integridade física ou mental” (p. 16) e não seria demasiado forçado ver a monstruosidade na natureza porque a seca revela o estado de “pobreza, opressão, e algumas condições de saúde” (p. 16) resultados da imperfeição na organização social. A natureza em Vidas secas consegue operar nos dois sentidos, basta ver a seguinte passagem em que o casal olha para o céu: “temendo que a nuvem se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrível da obra, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente”. (RAMOS, 1977, p. 14)
O monstro tem a capacidade de deslumbrar, por isso ele engana, causa espanto diante de sua força e tamanho. O gigantismo é uma das características do monstro, segundo Nazário (1998, p. 30), a figura do gigante está culturalmente associada à maldade, ainda mais que as personagens estavam olhando para o céu, um espaço teoricamente infinito à visão, mas que de tanto deslumbre endoidecia, mostrando a sua potência negativa. O azul agora é terrível, ao contrário do céu “risonho, límpido e profundo” do Hino Nacional, na obra ele significa a falta de chuva e aterroriza o casal porque sabem que terão de partir e voltar à incerteza mais profunda sobre o futuro. Voltando ao gigante, na letra do Hino diz que o Brasil é “gigante pela própria natureza”, a contrariar esta idéia em Vidas secas uma parte do país é devorada pela grandiosidade da natureza que fora outrora motivo de orgulho.
A monstruosidade da natureza
Etimologicamente o vocábulo “monstro” tem sua origem no latim “monstrum” e significa aquele que revela, desvenda algo. É impossível encerrá-los em conceitos, já que fazem parte do imaginário cultural, ou seja, estão livres de apreensões formais. Sua categorização é imprecisa, Miguel Mix (1993) dirá que ao monstro se apartam a estética e a ética, se fosse comparado a um homem, este homem seria um estrangeiro, ou seja, um indivíduo que está deslocado momentaneamente da realidade.
O monstro é um ser fronteiriço, vive no limite do mundo conhecido e do imaginário, característica a qual corrobora o fato de ele ser categoricamente inapreensível.
Por não ser esteticamente definido suas qualidades variam, sua constituição é um mosaico de vários elementos que são agregados historicamente. Luiz Nazário (1998) define o ser monstruoso por sua “anaturalidade”, de modo que nunca estará em conformidade com o homem, a sociedade ou o momento histórico. Na verdade o monstro tem por função afetar a idéia de humanidade, questionar os valores e limites do que é ser humano, ainda mais no mundo moderno em que “tudo que é sólido desmancha no ar” e os valores são postos à prova constantemente.
O monstro é um ser mutável, ele acompanha o tempo e o espaço, não é à toa que figuras monstruosas como o vampiro estão presentes desde o Egito Antigo, (LECOUTEUX, 2005), ou o acéfalo, as amazonas desde a Antiguidade grega (MIX, 1993). Esses seres metaforizam uma época e todos os valores pertinentes a ela, mediante este recorte o monstro inrompe trazendo consigo as indagações e perturbações sobre o espírito humano.
É nesse ínterim que a natureza em Vidas secas aparece. Como no século XIX a literatura fomentou o ideal nacional através da representação de uma paisagem verde exuberante, no modernismo de 30 ela vai adquirir outras cores e passar a questionar o que é ser brasileiro, o que é a nação brasileira. A caatinga se opõe à amazônia da mesma forma que bem e mal são contrários, na obra de José de Alencar é possível verificar a bondade da natureza, já com Graciliano Ramos a imagem do semi-árido é negativa porque apresenta o mosaico paisagístico e social do Brasil, o homem, os bichos e a vegetação da seca desconstroem a visão romântica da nossa concepção histórica.
Para essa segunda parte da análise tomamos como ponto de partida a concepção de monstro presente no ensaio de Jeffrey Jerome Cohen (2007), intitulado “A cultura dos monstros: sete teses”. As teses tentarão mapear como as representações do monstro se configuram na cultura, o que ele significa, qual o sentido imbricado nas suas aparições. Obviamente as teses não resumem o que é o monstro, como Cohen mesmo diz: “alguns fragmentos serão aqui recolhidos e temporariamente colados para formar uma rede frouxamente integrada” (2007, p. 26).
Na primeira tese ele postula que “o corpo do monstro é um corpo cultural” (p. 26), ou seja, ele nasce de uma determinada sociedade e corporifica certo momento da cultura. A seca sempre foi presente no sertão, porém na década de 1930 houve uma muito forte, a qual forçou o governo a tomar alguma posição (VILLA, 2007). Tardia como sempre, serviu de motivo para lançar o questionamento sobre a situação do sertanejo, conta Albuquerque Jr. (2000) que José Américo de Almeida, deputado federal e interventor no estado da Paraíba nos anos 30, escreveu várias cartas ao então presidente Getúlio Vargas pedindo providências para a seca.
A seca na obra de Graciliano Ramos é um reflexo histórico, mas não somente, pois “como uma letra na página, o monstro significa algo diferente dele: é sempre um deslocamento; ele habita, sempre, o intervalo entre o momento da convulsão que o criou e o momento no qual ele é recebido – para nascer outra vez” (COHEN, 2007, p. 27). A presença da caatinga é uma metáfora de como o Brasil é diversificado culturalmente e de como os lugares mais distantes como o sertão se fazem presentes na configuração nacional, apesar do abandono estatal.
A nova concepção do sertão acorda a sociedade e rompe o pensamento de homogeneidade nacional, na época do Estado Novo era quase inacreditável para o país como um todo que pessoas passassem fome e morressem de sede, como se não houvesse imaginação o bastante para pensar a calamidade vivida no sertão. Quando na segunda tese Cohen (2007) escreve que o “monstro sempre escapa” ele se refere à categorização, ainda que se tente capturá-lo o monstro é inapreensível, a ele não se aplicam as convenções, ele deforma o que é comum, seu corpo é singular, mas não é limitado.
O monstro sempre escapa porque ele é indestrutível (NAZÁRIO, 1998). Justifica-se então o fato de ele sempre retornar, pois o que aterroriza, segundo Carroll (1999, p. 45), não é o monstro em si, mas o pensamento do monstro. O leitor sabe que a narrativa é uma ficção, mas a sugestão de que uma desgraça por recair sobre ele é que amedronta, sendo assim, o mal encarnado na monstruosidade nunca tem fim. No nosso romance vemos a indestrutibilidade do monstro quando Fabiano tenta matar as aves de arribação sem sucesso: “Levantou a espingarda, puxou o gatilho sem pontaria. Cinco ou seis aves caíram no chão, o resto se espantou, os galhos queimados surgiram nus.
Mas pouco a pouco se foram cobrindo, aquilo não tinha fim”. (RAMOS, 1977, p. 117), e vendo a impossibilidade de livrar o sertão da seca conclui: “– Miseráveis. As bichas excomungadas eram a causa da seca. Se pudesse matá-las, a seca se extinguiria” (RAMOS, 1977, p. 120). A potência do monstro é justificada por sua indestrutibilidade
Não é por acaso que a seca no modernismo tem por função mostrar o quanto são porosas as fronteiras da nação, a produção cultural no Brasil do início do século XX levanta uma série de questões sobre a homogeneidade da nação propagada no século anterior. Como era um momento de efervescência sobre a questão nacional o monstro da seca surge para acirrar o debate, Cohen (2007) em sua terceira tese fala que “o monstro é o arauto da crise de categorias” (p. 30).
A seca anuncia e revela um Brasil entregue à mazela social, do povo explorado pelo fazendeiro, do governo que só atrapalha.
O meio físico influencia Fabiano de tal forma que sua identidade é questionada, ele já não é mais o sertanejo ingênuo e sofredor, aquele que Euclides da Cunha sintetizou na frase “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Fabiano não se presta a uma categorização definida, ele assume identidades de retirante, “bicho”, “homem”, “cabra” e um possível cangaceiro. Antonio Candido (1967), no livro Literatura e sociedade, tece uma crítica acerca da literatura regionalista do pré-modernismo, a dizer que é um “conto sertanejo artificial, pretensioso, criando um sentimento subalterno e fácil de condescendência em relação ao próprio país, encarando com olhos europeus nossas realidades mais típicas. O homem do campo é visto como pitoresco, sentimental, jocoso” (CANDIDO, 1967, p. 113). Vidas Secas recorta este sertanejo e a idéia de nação ao apresentar o avesso de uma natureza que é revelada na crueza da sua face de morte, a qual aborta a expectativa de futuro de Fabiano.
A caatinga representa um monstro na medida em que foi uma paisagem natural marginalizada na construção da imagem da nação, mesmo que tenha sido retratada no século XIX em O sertanejo, de José de Alencar, O cabeleira, de Franklin Távora ou em Os sertões, de Euclides da Cunha, já no século XX, ela sempre ficou em segundo plano sua função não passava de uma ilustração. Na sua quarta tese, Cohen (2007) diz que “o monstro mora nos portões da diferença” (p. 32), ele nasceu dentro de uma determinada cultura, mas constitui uma alteridade. A seca faz parte do Brasil, entretanto por motivos diversos foi esquecida reaparecendo, assim, como um outro dentro do mesmo. Em Vidas secas ela é tratada com realismo, participa ativamente da construção da narrativa influenciando as personagens, por isso que quando volta a cena na literatura brasileira é tão violenta.
Inclusive, voracidade e ferocidade são algumas das características do monstro descritas por Luiz Nazário (1998, p. 35). Essas propriedades estão representadas em nossa obra, sobretudo, pelas aves de rapina que matam o gado e ameaçam as pessoas:
O que indignava Fabiano era o costume que os miseráveis tinham de atirar bicadas aos olhos de criaturas que já não se podiam defender. Ergueu-se, assustado, como se os bichos tivessem descido do céu azul e andassem ali perto, num vôo baixo, fazendo curvas cada vez menores em torno do seu corpo, de Sinha Vitória e dos meninos. (RAMOS, 1977, p. 133)
A condição da natureza morar nos portões da diferença e ser uma alteridade não quer dizer que ela está ali para se mostrar somente, lembrando a primeira tese, quando a seca surge o seu corpo revela um constructo social, cultural, racial, econômico e sexual. Com relação ao social, podemos pontuar que a relação entre o Estado e a sociedade é questionada na obra, principalmente quando o Soldado Amarelo espanca Fabiano.
As plantas secas e espinhosas, os rios torrados, o sol escaldante e os bichos vorazes corroem a idéia de nação a partir do ponto em que desfigura o quadro pintado do Brasil, país que teve como motivação para a idéia de nação a natureza (CHAUI, 2001). Fazendo isso a seca se autodesconstrói – afinal, a caatinga também compõe a natureza brasileira – porque se ela está ali para questionar os valores da época ela não pode se fixar num único ponto, ela tem dupla referência de ser no mesmo instante o Mesmo e o Outro (COHEN, 2007), sendo assim, na medida em que critica a natureza nacional ela também está incluída na crítica. Vidas secas costura as duas paisagens – a floresta e a caatinga –, pois a seca não sobrepõe simplesmente e sim é agregada à paisagem nacional, explicando, assim, a justificativa para ela destruir, refazer e construir a nação.
A representação monstruosa não destrói simplesmente a imagem da natureza construída desde o romantismo, mas a idéia de que o Brasil é homogêneo e só há o “verde das matas”. Se a seca anulasse totalmente os outros ambientes naturais do país estaria ela somente substituindo-os, quando na verdade o monstro habita a linha tênue entre uma paisagem e outra, nunca deixando de problematizar e indagar.
O monstro surge para delimitar o espaço possível de ser cruzado, como se traçasse o limite entre a vida e a morte. A quinta tese postula que “o monstro policia as fronteiras do possível”, a seca proíbe a vida e demarca ao mesmo tempo os espaços culturais. O uso da seca no romance serve para mostrar que a natureza nem sempre permite tudo, ao contrário ela barra a passagem, é difícil para os retirantes saírem do sertão. Mesmo quando saem o narrador anuncia que sofrerão a partir dali outras agressões. Não tinham escolha, era maior do que eles a grandiosa natureza e sua força destruidora.
Foram embora, chegariam a outro lugar no qual se plantariam, mostrando que o ciclo da vida deles não pararia ali. Muito menos a de outros nordestinos que fariam o mesmo percurso: “Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitoria e os dois meninos”. (RAMOS, 1977, p. 134)
Como já foi dito anteriormente, o monstro é um ser fronteiriço, ele habita os limites do que é possível à experiência humana. Por isso que ele nasce nos locais mais longínquos e marginais da imaginação (CARROLL, 1999, p. 54), até os anos 30 o semi-árido nordestino foi uma paisagem pouco lembrada, salvo algumas obras já mencionadas, no entanto sabia-se que era um lugar distante, quente e seco, afinal era um dos “sertões do Brasil”.
Para que exista o monstro é preciso que ele seja ameaçador, Carroll desenvolve a idéia a dizer que o monstro deve causar repulsa e medo, no caso da caatinga a seca manchava o cenário brasileiro romântico do século XIX e sugeria uma ameaça ao pensamento de nação. Apesar de não estar diretamente expresso em Vidas secas é necessário lembrar que desse ambiente seco nasceram movimentos como o messianismo de Antônio Conselheiro, em Canudos, o coronelismo e o cangaço, não dizemos aqui que a natureza condicionou totalmente o aparecimento deles, no entanto é sabido que culturalmente sempre é feita a associação entre o Nordeste, a caatinga e os movimentos citados.
Cohen (2007) na sétima e última tese diz: “o monstro está situado no limiar... do tornar-se” (p. 54), complementa ainda dizendo que eles “são nossos filhos” (p. 54). Mas como? Para se chegar a uma crítica à nação, a literatura brasileira precisou amadurecer várias idéias, por isso que o monstro é tão conhecedor do meio, ele sempre esteve no centro, mas foi empurrado para as margens. A paisagem seca esteve presente em narrativas do século XIX, mas servia somente como pano de fundo para o desenrolar das ações das personagens, como já foi visto.
Graciliano Ramos dá materialidade a essa natureza monstruosa, através de uma linguagem enxuta e objetiva ele constrói um espaço com elementos ameaçadores da vida e da nação.
Além de ter uma influência psicológica sobre as personagens a natureza é materializada através dos vários elementos que a compõe. Nazário (1998) dirá que “os monstros são excessivamente concretos. Eles se apresentam peludos, musculosos, cheios de dentes, tentáculos, membros e garras” (p. 36).
A caatinga tem todos os objetos da natureza bela do romantismo, no entanto na paisagem nordestina estão modificados: no semi-árido tem rio, mas é seco, tem plantas, mas são espinhosas, com galhos finos, tem aves, mas são de rapina, tem um céu azul, mas que endoidece e tem pessoas, mas reificadas e animalizadas. Com essas qualidades a monstruosidade da seca expõe os limites do tornar-se algo que ela não é, mas mesmo assim ela mostra, e de tão conhecedora do espaço, ela ataca a nação naquilo que dá mais orgulho ao país: a natureza.
Considerações finais
A relação entre natureza, já presente no romantismo, intensifica-se no modernismo. Primeiro, porque a partir das imagens da natureza desenvolvidas na literatura é possível ver a idéia de nação se formando e deformando ao mesmo tempo. Segundo, porque a natureza como espaço explorado pelo trabalho aumenta e conseqüentemente a transforma. Isto é, a imagem da natureza representada pelo romantismo seria mais exuberante e mítica, grosso modo, similar à do modernismo dos anos 1920. Já a natureza do modernismo da década de 1930 sofre uma reorientação ideológica e se torna hostil, tão hostil quanto a exploração do homem pelo homem.
Dessa forma, a natureza consegue agregar uma potência destruidora e influenciar a tudo e a todos, ao fazer isso Graciliano representa invertidamente a relação histórica entre o homem e a natureza, provando assim que o regionalismo e o universalismo não são incompatíveis. Muito pelo contrário, os seres mais primitivos da narrativa são os humanos, tanto o explorador – na figura do patrão, do cobrador e do Soldado Amarelo – quanto os retirantes, os quais tiveram sua humanidade retirada por uma série de fatores sócio-ambientais.
O monstro tem suas bases na cultura, no caso da natureza ela toma um corpo fragmentado em várias instâncias, ou seja, a exuberância da natureza brasileira traz consigo uma ideologia que perpassa a simples reflexão e vai além. Não é à toa que em pesquisa relatada por Marilena Chaui (2001), o povo brasileiro ainda tem seu orgulho pautado nas representações que faz da natureza. Isso revela que quando Vidas secas surge trazendo consigo um monstro, um ser culturalmente construído, a obra questionará os aspectos sociais, morais, éticos, espaciais, políticos e sexuais da nossa sociedade.
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[1] Este trabalho foi construído mediante o projeto de pesquisa intitulado Representações da natureza na literatura
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