Estudo investiga relação entre as monstruosidades presentes na literatura e a natureza humana.
Em 1831, quando Mary Shelley publicou a versão revistada de Frankenstein, ou o moderno Prometeu, talvez não tenha imaginado que a saga do seu personagem – um monstro construído artificialmente em laboratório – perduraria por tantos anos. Entretanto, quase dois séculos depois, ele permanece conhecido e se imortalizou como figura presente em filmes, desenhos animados e outras obras de ficção.
Mas, afinal, o que tem esta criatura de especial? O que faz com que, ainda hoje, ele pareça tão atual? De acordo com os estudos desenvolvidos por um grupo de pesquisadores da Faculdade de Letras (Fale) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o fascínio – e ao mesmo tempo aversão – que este e outros monstros fictícios exercem sobre as pessoas é justificável: eles são a própria representação dos medos e perigos presentes na experiência humana.
Os trabalhos do grupo apontam que, ao corporificarem receios e horrores, os seres monstruosos ajudam a entender e organizar o caos da natureza e da humanidade. Modernamente, Frankenstein, por exemplo, pertenceria a uma linhagem de criaturas que explicitam, entre outras coisas, o mal-estar humano diante do desenvolvimento da ciência e do progresso tecnológico.
O projeto da Fale teve início com uma pesquisa que o professor Julio Jeha desenvolvia sobre o mal na experiência humana e suas formas de representação na literatura, que originou o grupo Crimes, pecados e monstruosidades: o mal na literatura” (veja box). “Partimos do princípio de que o monstro é usado como artifício para representar o mal, tendo em vista a dificuldade que existe em falar sobre este tema”, conta.
Segundo o professor, o conceito de mal é relativo em cada cultura, cada época, cada grupo de interesses. Da mesma forma, o “monstro” adquire formas diferentes – sexo, raça – dependendo das características do povo em questão. “Praticamente todas as culturas têm uma idéia de mal, mas ela varia de um povo para outro, então, trabalhamos com as suas formas de representação”, reafirma.
Do monstro à monstruosidade
Julio Jera(2007)explica que, sendo o monstro uma metáfora do mal, o trabalho leva em consideração não mais as criaturas em si, mas suas monstruosidades. “Falamos daqueles atos monstruosos que as pessoas cometem. Todos os grandes ditadores, como Stalin, Hitler, tinham algo de bom, mas cometeram atrocidades, atos de crueldade que foram além do que se esperava de um ser humano”, avalia. Ele destaca que o cerne da questão é a capacidade do homem de exceder o limite da maldade, e que a literatura é um bom campo para analisar isso.
Frankenstein foi apenas um exemplo utilizado no trabalho. Enquanto a maioria das pessoas vê a criatura como uma metáfora contra a ciência ou sobre o “cientista maluco”, o professor pensa o contrário. “Procuro mostrar que Shelley fala é contra a falta de responsabilidade em qualquer ato e não contra a ciência, trata-se de uma metáfora contra o obscurantismo, além de ser também uma representação do remorso da autora com relação a atos da sua vida pessoal”, contesta.
Segundo ele, o monstro é um vazio que se pode preencher com vários medos, acusações, castigos. Ele pode ser uma criatura, uma pessoa ou mesmo um lugar. A professora Mariângela Paraizo, uma das estudiosas, por exemplo, trabalha a idéia das cidades como sereias, relacionando-as também às sirenes, em uma metáfora da atração que os centros urbanos representam e da forma como eles “engolem” as pessoas, que quando ali chegam ouvem, em vez de canto, a sirene da polícia, da ambulância.
Os extraterrestres – marcianos – também são lembrados nas pesquisas do grupo, como alusão, principalmente no período da guerra fria, ao ser humano desconhecido do outro. “Trabalhamos coisas bem díspares, para cobrir um escopo mais amplo. No romance de Cornélio Penna, “A menina morta”, focamos a mãe monstruosa, que deixa a filha morrer ou, por outro lado, gera uma filha monstruosa”, exemplifica.
Nascimento de um monstro
A forma como um monstro surge em determinada cultura pode estar relacionada a aspectos diversos. Uma das abordagens trabalhadas pelos pesquisadores é a da utilização dessas criaturas como forma de obter a coesão do grupo. “Toda comunidade precisa ter união interna para agir contra um inimigo externo. Uma das maneiras mais fáceis de conseguir isso é usar a imagem do monstro”, explica Julio. Transformando o inimigo em monstro, é possível unir todos contra ele.
O monstro pode ser resultado, ainda, de uma falha no conhecimento humano – tanto no sentido científico, quanto moral e social. Ou seja, aquilo que o homem não conhece ainda, tende a ver como monstruoso. Da mesma forma, a partir do momento em que se torna natural, passa a fazer parte da realidade das pessoas e deixa de ser monstro. “Aristóteles já dizia que encontrar uma galinha de duas cabeças é um prodígio, mas se existir outra igual, mais outra e um galo de duas cabeças e eles se reproduzirem, isso deixa de ser anormal e nasce uma nova raça que vai ser incorporada ao nosso conceito de real”, lembra Julio Jeha.
Outra situação passível de ocorrer é o estado, a organização política, ficar tão grande que se transforme em um monstro. “Ele não dá espaço para o indivíduo respirar, a pessoa se perde, é massacrada”, explica. Em todos os casos, o professor destaca que o monstro é sempre caracterizado pela idéia de excesso, irreal e de anormal.
Evolução
Julio Jeha reitera que, desde as primeiras figuras, dos relatos iniciais da atividade humana, sempre houve a idéia do monstro, tratado como o desconhecido, o inimigo, aquilo que é mau para o indivíduo. Esse conceito vem evoluindo, com o desenvolvimento de cada cultura. Para os romanos, ele era uma advertência dos deuses, uma forma de castigo, caso os homens se portassem de forma a quebrar o pacto estabelecido com as divindades. Também na mitologia grega, os monstros são punições enviadas pelos deuses.
Já na Idade Média, os pecados capitais vão corporificar os monstros. Eles são alegorias religiosas: o vício, a gula, a ira são apontados como seres monstruosos. A seguir, com a chegada da Idade Moderna e das grandes descobertas, surgem dois novos propósitos. Um deles era ser o guardião de uma fronteira ou de algo valioso – sinalizar ali a existência do monstro inibia o acesso de outros. Outro seria explicar algo desconhecido.
Na medida em que os séculos XIX e XX se aproximam, a idéia do monstro perde sua faceta sobrenatural, para ser tratada como uma ocorrência médica. Na medicina, por exemplo, surge a teratologia, ligada ao estudo das monstruosidades. “As anomalias genéticas entram em cena e isso deixa de ser sobrenatural para ser científico”, conta Julio. “É claro que o monstro sobrenatural sempre vai existir na literatura de horror, mas vamos ter também o monstro moral, em personagens que se imortalizam, como Hannibal Lecter, de “Silêncio dos inocentes”, e outros”, complementa.
Incrível! Sinceramente não imaginava que como seres humanos somos capazes de tais comportamentos.
ResponderExcluirMuito interessante.
ResponderExcluirClarificou o meu entendimento e me deu base para a produção do artigo.
o subprojeto apresentado pela equipe coordenada por Júlio Jeha em 2007 na UFMG é muito interresante,pois através dos estudos do grupo será possível conhercer um pouco mais a respeito do mal nas experiências do ser humano atrevés da literatura
ResponderExcluirAs diferentes análises apresentadas no texto ´´monstro e monstruodidade na natureza humana´´foram muito importants para o meu aprendizado, li o texto várias vezes e a cada leitura uma descoberta. Uma das quetões que acredito ser relevante destacar é a argumentação de Júlio Jeha ao justificar que ´´Monstro e uma metáfora do mal´´´que as pessoas são passíveis de monstruosidade e bondade.
ResponderExcluirObrigada pelas referências Generosa, foram de grande ajuda e auxílio na elaboração de meu artigo!
ResponderExcluire muito interessante o conteúdo também!
Todos esses textos contribuiram para o enriquecimento de nosso trabalho!
Este comentário foi removido pelo autor.
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ResponderExcluirfoi muito esclarecedor o texto para a compreensão do que seja monstro e monstruosidade na literatura.
ResponderExcluirTodo o texto apresentado mostrando a relação entre monstro e monstruosidade na natureza humana foi de grande contribuição para um maior entendimento do assunto, pois segundo o estudo de Júlio Jera(2007) o monstro é um vazio que se pode preencher com vários medos, acusações, mas levando em consideração não mais as criaturas em si, e sim as suas monstruosidades.
ResponderExcluirÉ muito interessante o estudo, pois é novo, podemos observar o ser humano por um outro prisma.
Muito bom ter em mãos material esclarecedor como este. Obrigada.
ResponderExcluirprofessora...seu material foi muito importante para elaboração de meu artigo.Foi muito esclarecedor,mostrou caminhos e meu grandes ideias.obrigada pelas referencias.
ResponderExcluirA relação apresentada entre a monstruosidade e a obra Vidas Secas é de grande valia para uma maior compreensão do tema analisado, ou seja a monstruosidade. Tem-se um estudo voltado para a dificuldade enfrentada pelos personagens por causa da seca, bem como o aspectos monstruosos que são notados a partir dessa temática.
ResponderExcluirA natureza, ou melhor a seca aparece como o mal, pelo fato da estiagem causar tantos problemas. A natureza que tinha um tom romantico abre espaço para a seca e para o sofrimento.
AMANDA OLIVEIRA
ResponderExcluirFoi bastante edificante saber sobre o que representa o monstro e a monstruosidade em nossa geraçao. obrigada generosa.
Mais uma vez podemos observar esses novos conceitos de monstro e monstruosidade.O monstro e a monstruosidade surgindo dentre cada época de forma inovadora, pois cada sociedade cria seus próprios monstros, depende da cultura, da ideologia e da percepção de cada um.É muito interessante quando Júlio cita que monstro é um vazio que pode ser preenchido, essa inovação é valiosa, uma vez que podemos assim dizer que cada ser humano possui o seu próprio monstro, a sua própria monstruosidade e o que irá preenche-la, dependerá do meio em que está inserido, sendo observável a cultura da sociedade de sua época e em especial cada ser.
ResponderExcluirfoi muito edificante
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