sábado, 9 de abril de 2011

CANTIGAS TROVADORESCAS - VIII

Cantiga de amor medieval

Jessica e Terezinha


Noutro dia, quando me despedi
da minha Senhor, e quando ela me ouviu ir
e não me falou, nem me quis ouvir,
tão sem ventura foi que não morri,
mas, se mil vezes pudesse morrer,
menor seria a dor que ela me faz sofrer.
E eu lhe disse: "me ouça, minha Senhor" !
Olhou-me pouco e teve por mim desdém;
e, sem me dizer nem mal nem bem,
me deixou sofrendo, e com grande pavor,
mas, se mil vezes pudesse morrer,
menor seria o sofrimento de minha dor.
E sei muito bem, eu que ela deixei,
e dali me fui, que não me quis falar,
e então quase morri de pesar,
mas de pesar nuncam mais morrerei,
pois, se mil vezes pudesse morrer,
menor dor teria do que ela me faz sofrer.
(D. Joan Soares Coelho)

Nesta cantiga, o trovador sofre por ser desprezado pela mulher amada. Ele diz que “mas, se mil vezes pudesse morrer, / menor seria a dor que ela me faz sofrer”. Aqui, ele mostra seu enorme sofrimento, e prefere a morte que esse sentimento. A impressão que se tem quando é dito “Noutro dia, quando me despedi/ da minha Senhor, e quando ela me ouviu ir/ e não me falou, nem me quis ouvir”, é que a amada não se importa com sua partida. Ao longo de toda a cantiga podemos perceber que esse ser que é idealizado, não corresponde ao amor que lhe é dado, pelo contrário, ela o rejeita.


Cantiga de amor moderna

Como morreu quem nunca amar
Se fez pela coisa que mais amou
E quando dela receou
Sofreu, morrendo de pesar
Ai, minha senhora, assim morro eu

Como morreu quem foi amar
Quem nunca bem lhe quis fazer
E de quem Deus lhe faz saber
Que a morte havia de alcançar,
Ai, minha senhora, assim morro eu.

Igual ao homem que indoideceu
Com a grande mágoa que sentiu,
Senhora, e nunca mais dormiu
Perdeu a paz, depois morreu,
Ai, minha senhora, assim morro eu.


Como morreu quem amou tal
Mulher que nunca lhe quis bem
E a viu levada por alguém
Que não a valia nem a vale
Ai, minha senhora, assim morro eu

Nesta cantiga, percebemos que o eu-lírico expressa sua dor e sofrimento por não ter o amor da mulher amada. Em todas as quatro estrofes, ele faz um jogo de amor e morte, revelando que o amor da mulher representa sua vida. A amada se torna uma pessoa inacessível, ele canta a dor de vê-la sendo levada por outro alguém que ele julga “que na a valia nem vale”, aqui se vê claramente sua dor por não ter dela o amor. Ele idealiza sua amada, pois coloca sua vida nas mãos dela, e a não correspondência desse amor, representa para ele a morte.


Cantiga de amigo medieval

Ai de mim, coitada !
Como vivo em grande cuidado
por meu amigo
que se ausenta alongado !
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda !
Ai de mim, coitada !
Como vivo em grande desejo
por meu amigo
que tarda e que não vejo !
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda !
(El-rei D. Sancho I, séc. XII-XIII)

Neste tipo de cantiga, o eu-lírico é feminino, apesar de o autor ser um homem. Aqui, ela usa o termo “amigo”, mas na verdade quer dizer “namorado”. Ela canta a tristeza por estar longe de seu “amigo”, que está na “Guarda”, ou seja, que está lutando na guerra. Isso é muito comum nas cantigas de amigo. Ela se mostra como uma “coitada”, revelando seu sofrimento e seu enorme desejo de estar junto de seu amigo. Esse tardar mostra a lamentação dela por espera-lo e a demora pra que o seu desejo seja realizado.


Cantiga de amigo moderna

Ledo o meu amigo foi caçar no monte,
Disseram-me as aves que o esperasse na fonte.
Jovial o vento levou-me o vestido,
Soltou-me o cabelo. E o resto não digo.
Que o esperasse na fonte disseram-me as aves.
A brisa movia as águas suaves.
Jovial o vento levou-me o vestido,
Soltou-me o cabelo. E o resto não digo.
A brisa movia as águas na fonte,
Logo sossegaram vindo ele do monte.
Jovial o vento levou-me o vestido,
Soltou-me o cabelo. E o resto não digo.

Logo sossegaram as águas suaves.
Vindo ele do monte, cantaram as aves.
Jovial o vento levou-me o vestido,
Soltou-me o cabelo. E o resto não digo

Nesta cantiga, o eu-lírico revela a angústia pelo fato de o seu “amigo” ter ido caçar no monte, ou seja, por sua ausência. Ela relata que as aves disseram para esperá-lo na fonte, e que o vento a despiu e soltou seu cabelo. Ela diz a mesma coisa nas duas primeiras estrofes, mas com expressões dos dois primeiros versos de cada uma sendo invertidas. Nas quatro estrofes ela preserva os dois versos finais, que sempre dizem “Jovial o vento levou-me o vestido/ Soltou-me o cabelo. E o resto não digo”. Na última frase, ela usa um tom de mistério, não querendo revelar o que aconteceu posteriormente. Há também nos versos iniciais das duas últimas estrofes, a mesma inversão feita nos dois primeiros.



Cantiga de escárnio medieval

Rei queimado morreu con amor
Em seus cantares, por Santa Maria
por una dona que gran bem queria
e por se meter por mais trovador
porque lh'ela non quis [o] benfazer
fez-s'el en seus cantares morrer
mas ressurgiu depois ao tercer dia!...
Tradução:
Rei queimado morreu com amor.
Em seus cantares, por Santa Maria
por uma senhora a quen amava
e por aparecer um melhor trovador,
porque lhe ela não lhe quis bem-fazer
fez-se ele em seus cantares morrer
mas ressurgiu depois ao terceiro dia! ...

Nesta cantiga, o trovador indiretamente critica o “rei” por amar a “Santa Maria”. Ele não usa o nome da pessoa satirizada, e indiretamente faz uma apreciação desfavorável à ele. O trovador ao dizer “e por aparecer um melhor trovador,/ porque lhe ela não lhe quis bem fazer”, o faz num tom sarcástico, pois revela que a amada do “rei” o deixou para ficar com outro. Ele faz isso ironicamente, e mescla a sátira que faz a esse alguém, com a história bíblica de Jesus Cristo. Ele usa o nome de “Santa Maria” com um duplo sentido, e usa a frase “mas ressurgiu depois ao terceiro dia!”. Sabemos que quem ressuscitou ao terceiro dia foi Cristo, esta estratégia usada por ele serve para não sabermos quem está sendo satirizado.


Cantiga de escárnio moderna

Atraso Ou Solução
Juca Chaves

Já meia hora atrasada
o que em ti é natural.
Até pareces, querida,
com os nossos trens da central
isto ainda acaba mal.

Não brinques assim comigo,
com este teu vem ou não vem,
não faças de estação meu coração,
nem faças o teu de trem, tá bem?

Ai, ai, amor, ai que dor
eu sinto o ar esperar
até a chuva já veio,
mas não vens, ai, por que?
quem me dera, minha amada
se tu fostes viatura
cá da nossa prefeitura
pois te dava uma pedrada
muito bem dada.

Na cantiga analisada, há uma crítica a uma mulher específica, mas que assim como na cantiga medieval, não tem seu nome revelado. O autor se vale de comparações feitas à mulher para criticá-la. Ele a compara com o “trem” e pede para que ela não faça do seu coração uma estação. Ou seja, pede para que ela não o faça esperar. Ele usa da ambiguidade, criticando a mulher e ironizando um patrimônio público, neste caso a viatura da prefeitura, dizendo que “se tu fostes viatura/cá da nossa prefeitura/pois te dada uma pedrada/muito bem dada”. Em toda a cantiga ele satiriza e ironiza a mulher, usando de muitos recursos para dizer que ela está “atrasada”. Ele faz um jogo duplo, pois ao mesmo tempo que diz que ela é sua “amada”, ele a critica.


Cantiga de maldizer medieval

"Dom Bernaldo, pois trazeis
convosco uma tal mulher,
a pior que conheceis
que se o alguazil souber,
açoitá-la quererá.
A prostituta queixar-se-á
e vós, assanhar-vos-ei

Vós que tão bem entendeis
o que um bom jogral entende,
por que demônio viveis
com uma mulher que se vende ?
E depois, o que fareis
se alguém a El-rei contar
a mulher com quem viveis
e ele a quiser justiçar?
Se nem Deus lhe valerá,
muito vos molestará,
pois valer-lhe não podeis" (Pero da Ponte)

Nesta cantiga, o trovador satiriza a mulher que é trazida por “Dom Bernaldo”, usando palavras grosseiras como “prostituta” para difamá-la. Ele não cita o nome da pessoa, mas a crítica feita a ela, se dá de forma explícita, pois ele a ofende claramente. A apreciação desfavorável se refere a comportamentos sexuais, e hábitos feios e imorais
Da mulher em questão. Diferente da cantiga de escárnio, aqui não há dupla interpretação, pois o autor é objetivo e direto.


Cantiga de maldizer moderna
“Geni”, de Chico Buarque de Holanda:
"De tudo que é nego torto
Do mangue, do cais do porto
Ela já foi namorada.
O seu corpo é dos errantes,
dos cegos, dos retirantes:
é de quem não tem mais nada.
Dá-se assim desde menina
na garagem, na cantina,
atrás do tanque, no mato.
É a rainha dos detentos,
das loucas, dos lazarentos
dos moleques do internato.
E também vai amiúde
com os velhinhos sem saúde
e as viúvas sem porvir.
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
vive sempre a repetir:
Joga pedra na Geni!
Joga pedra na Geni!
Ela é feita prá apanhar
ela é boa de cuspir.
Ela dá prá qualquer um!
Maldita Geni!
Um dia surgiu brilhante
entre nuvens flutuante
um enorme Zepelim.
Pairou sobre os edifícios
abriu dois mil orifícios
com dois mil canhões assim!
A cidade, apavorada,
se quietou paralisada
pronta prá virar geléia.
Mas do Zepelim gigante
desceu o seu comandante
dizendo:"_Mudei de idéia!
Quando vi nessa cidade
tanto horror e iniquidade
resolvi tudo explodir.
Mas posso evitar o drama
se aquela formosa dama
esta noite me servir.":
Essa dama é Geni
Mas só pode ser Geni
Ela é feita prá apanhar,
ela é boa de cuspir,
Ela dá prá qualquer um!
Maldita Geni!
Mas de fato logo ela
tão coitada, tão singela,
cativara o forasteiro.
O guerreiro tão vistoso
tão temido e poderoso,
era dela prisioneiro.
Acontece que a donzela,
isso era segredo dela,
também tinha seus caprichos.
E a deitar com homem tão nobre
tão cheirando a brilho e a cobre,
preferia amar com os bichos.
Ao ouvir tal heresia,
a cidade em romaria
foi beijar a sua mão.
O prefeito de joelhos,
O bispo de olhos vermelhos
e o banqueiro com um milhão:
Vá com ele, vá, Geni!
Vá com ele, vá, Geni!
Você pode nos salvar,
você vai nos redimir:
você dá prá qualquer um,
bendita Geni!
Foram tantos os pedidos,
tão sinceros, tão sentidos
que ela dominou seu asco.
Nessa noite lancinante,
entregou-se a tal amante
como quem dá-se ao carrasco.
Ele fez tanta sujeira,
lambuzou-se a noite inteira,
até ficar saciado.
E nem bem amanhecia
partiu numa nuvem fria
com seu Zepelim prateado.
Num suspiro aliviado,
Ela se virou de lado
e tentou até sorrir.
Mas logo raiou o dia
e a cidade em cantoria
não deixou ela dormir:
Joga pedra na Geni!
Joga pedra na Geni!
Ela é feita prá apanhar,
ela é boa de cuspir,
ela dá prá qualquer um.
Maldita Geni!" ( “ Geni” , Chico Buarque de Holanda)

Nesta cantiga, o eu lírico usa palavras claramente ofensivas, como quando diz que “ela dá pra qualquer um”. Aqui ele expõe o nome da mulher satirizada, “Geni”, a difamando explicitamente. Seu tom de exagero ao descrevê-la, revela seu grande prazer em criticá-la. Aqui, o autor faz a mesma crítica que é feita na cantiga anterior, onde diretamente a ironiza por seus hábitos imorais e por sua vida sexual exacerbada. Ele a ridiculariza com expressões como “dá se assim desde menina”; “Ela é feia prá apanhar” e “ela é boa de cuspir”. Na cantiga, quando aparece o “Zepelim”, todos parecem esquecer dos seus “defeitos”, mas quando ele vai embora, ela é novamente criticada, e a canção termina com “Maldita Geni”, afirmando toda a intenção do autor, que é difamá-la satirizadamente.



REFERÊNCIAS:
TAVEIROS, Pais Soares de. Apud: CORREIA, Natália. Cantares de trovadores. 2. ed. Lisboa: Editorial estampa. 1978. p. 56-57

http://rosabe.sites.uol.com.br/geni.htm.
Acesso em 05/04/2011 as 9:38 hs

http://www.csbrj.org.br/culturaclassica/Trabalhos/83/garridoeoutros/antologiamedieval.htm. Acesso em 05/04/2011 as 8:21 hs

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cantigas_de_esc%C3%A1rnio_e_maldizer
Acesso em 05/04/2011 as 9:45 hs

http://ler.literaturas.pro.br/index.jsp?conteudo=385
Acesso em 06/04/2011 as 12:01 hs

http://cancoesdeescarnio.blogspot.com/
Acesso em 06/04/2011 as 12:22 hs

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